Era um corredor longo e negro, margeado do começo ao fim por finas cortinas, também negras, diáfanas e puídas pelo tempo. Pé ante pé, ela caminhou. Não fazia ideia de onde estava ou como havia chegado ali, mas caminhou. As cortinas ondulavam ao sabor da brisa gelada. Para além delas, o nada - os olhos se perdiam na escuridão.
No fim do corredor, algo brilhava. Cônscia da estranheza, do perigo, da ausência de sentido ou coerência, ela prosseguiu, hipnotizada. Algo soprava em seus ouvidos, instigava-a a continuar, a alcançar aquele lume prateado: talvez nele estivessem as respostas para as suas perguntas, mesmo aquelas que sua mente ainda não havia criado.
Seus passos não faziam barulho – ela deslizava pelo silêncio.
Era um espelho. Antigo, bordas rebuscadas, – prata, talvez – maior que ela mesma. A moça encarou seu reflexo pálido por segundo ou dois, antes de perceber o vulto que se aproximava. Paralisada, o coração dolorosamente tentando escapar do peito, ela o viu chegar, pelo espelho. Sentiu sua respiração pesada atrás de si. Encarou seus olhos de vidro, que sustentavam os dela com tanta intensidade que, se fosse possível, ela coraria ao mesmo tempo em que sua tez perdia toda a cor.
Ela o desejou.
Ainda fitando o espelho, ela o viu suspirar, tristemente. Sentiu que ele ia-se embora. Não, ninguém nunca a havia olhado daquela forma! Ela tentou dizer-lhe, com os olhos, mas ele balançou a cabeça, parecendo ainda mais desolado, e deu um passo para trás, em despedida. Ela virou-se, ia persegui-lo, tomá-lo nos braços.
Mas ele não estava em lugar algum.
Estarrecida, ela encarou a escuridão que se perdia no horizonte e voltou o olhar para o espelho. Lá estava ele, em pé atrás dela, derrotado. Parecia indagar ‘entendeu agora?’. Aproximou-se, tentou tocá-la, hesitou – por fim, deu as costas e desapareceu no corredor.
Ela acordou.
Olhou ao redor e suspirou, aliviada: sonho. Fora dormir impressionada com as histórias de fantasmas contadas por seus primos da fazenda e ali estava o resultado. Acendeu a luz, fechou as grandes janelas em arco, conferiu os armários. A julgar pela escuridão lá fora, todos já haviam se recolhido.
Ela recostou a cabeça ao travesseiro e encarou o teto. “Ele foi o primeiro noivo da nossa bisavó”, ecoou a voz do primo mais novo em sua cabeça. “Mas foi encontrado morto, pendurado pelo pescoço numa das árvores da fazenda. Há quem diga que foi assassinato”, prosseguiu o adolescente “já que a família de um coronel das redondezas estava muito interessada em casar o filho com a bisa. Unir as terras, coisa assim”.
Ela ouvira a história à beira do rio, comendo cajus com alguns dos primos e tios. Férias na fazenda. Eles sempre gostavam de assustá-la e até conseguiam, quando ela era mais nova. Os anos vieram, o ceticismo também, mas ficou o pretexto – era só questão de reunirem-se ao redor da fogueira, compartilhando histórias e mantas de lã, olhando as estrelas até que o frio fizesse as vezes de toque de recolher.
Naquele dia, em especial, seu tio dissera, com o olhar saudoso:
— Vocês não deviam contar essa história com esse ar tão leviano, meninos. Vovó nunca se recuperou de verdade da morte do primeiro noivo. Ela vivia com o olhar perdido, sobretudo nos últimos anos de vida...
— Então essa história é real, tio? — ela indagou, chocada.
— Sim, sim. Claro que a parte dos fantasmas é brincadeira boba dos seus primos... Mas esse rapaz, Leonardo, existiu. Aliás — ele olhou-a com um sorriso de saudade nos lábios — você se parece muito com vovó Eulália, sabia?
A moça em preto-e-branco no álbum de fotografias, de fato, parecia-se com ela. Exceto pelo olhar, incompleto, distante – mesmo rodeada de marido, filhos, mesmo que cada foto revelasse razões de sobra para sorrir. “Mas é muito fácil elaborar a felicidade a ser eternizada nos fotogramas”, pensou. Sobretudo antigamente, naquela época ainda perplexa com aquela máquina capaz de congelar momentos.
Naquela tarde, ela caminhara até a pequena capela centenária, no alto de um morro, vigiando toda a fazenda. No cemitério, repousavam gerações. Bisa Eulália dormia num dos túmulos mais recentes, de mármore branco. Num canto mais afastado, à sombra de um carvalho, um túmulo cinzento e solitário encerrava Leonardo, que Eulália, um tio lhe contou, insistira para que fosse enterrado na fazenda. A foto oval revelava um rosto grave, preto e branco, numa expressão de pesar que parecia antever seu destino. “A perfeita expressão para ilustrar a morte”, ela pensou, pousando uma flor branca sobre a sepultura gasta.
Recostada à cabeceira da cama, ela relembrava o dia. Como a história a tocara. Como aquela aura de incompletude rondava toda a fazenda, mesmo quase cem anos depois. Tentou ler um romance de banca de revista que estava no criado-mudo, mas seus pensamentos ainda estavam na história interrompida de sua bisavó.
Até que uma lufada de vento gelado a fez erguer os olhos do livro. A janela em arco, que ela fechara algumas horas atrás, estava aberta. Ela avistou ao longe a capela, o cemitério, o carvalho. Trêmula, percebeu que um lume prateado, o mesmo de seu sonho, emanava da sepultura cinzenta. Levantou-se, vestiu um robe, calçou seus chinelos. Era como no sonho – ela ignorava os porquês, só sabia que precisava ir até lá.
Vaga-lumes pairavam na noite. Ela sabia que ele estaria lá antes de vê-lo, corpóreo, parecendo material e ao mesmo tempo um eco distante – uma memória. Ele mantinha os olhos nela como se nada mais enxergasse. Não era desejo, não era mágoa, não eram ordens, era apenas a constatação.
— Não, Leonardo — ela ouviu-se murmurar — eu não sou ela.
Ele assentiu.
— Me desculpe — ela continuou — eu queria terminar essa história por vocês, eu queria...
Ele sinalizou que ela se calasse. Aproximou-se, um sorriso melancólico nos lábios, mudo. Levou os dedos aos lábios, encostou-os no rosto dela, que nada sentiu, mas imaginou.
— Ela morreu te amando.
Ele sorriu mais uma vez. Permaneceram ali, estáticos, por minuto ou dois, até que ele pareceu reunir toda a coragem que não tinha e, com um gesto, mandou-a embora. Ela balançou a cabeça, negativamente, mas ele tentou tocá-la novamente, como se quisesse fazê-la perceber que não havia nada a ser feito.
Ela entendeu.
Despertou horas mais tarde, sem saber se sonhara ou não. Aos seus pés, uma flor branca repousava.