sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A caneta, o papel e o desengano

E eis mais um tropeço da mocinha transparente. Não que eu não esteja acostumada, acreditem, esta é a minha rotina desde antes de eu perceber o poder mortífero deste músculo involuntário que pulsa, dizem, do lado esquerdo da caixa torácica. Mas não deixo de me incomodar a cada vez que preciso limpar toda a bagunça. Estar habituada a ser eu mesma não significa que eu goste disso.

Mas você também não colabora, não é? Será que você podia fazer-me o favor de virar esses olhos pr'outro lugar? Não, olhar pessoas é uma coisa normal, mas o seu olhar, em questão, é um não sei o quê de falsas promessas e blefes que não estou acostumada a desacreditar.

Você sempre parece sincero assim?

Ei, eu não estou magoada. Chateada, talvez, frustrada, sempre, vou até anotar essas rimantes e compor um poema sobre isso, depois. Magoada eu não estou. Você pode parar de se preocupar, por favor? Ser adorável, na presente situação, não ajuda muita coisa.


A vida é feita disso. Corações quebram aqui, outros ali, ao mesmo tempo em que nos machucam, machucamos também. Assim segue esse mundo velho, essa tragicomédia que vá lá, tem sua poesia. É por causa disso que pessoas como eu vêm chorar suas palavras num pretenso anonimato que, cedo ou tarde, cai por terra. Por causa disso existem poetas e compositores. Torna tudo mais bonito. Dor de amor no coração dos outros e refresco.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Battleships

(Baseado na música homônima da banda Travis)

Do que entendemos bem é o desperdício, meu amor... Só disso.

Por que ao invés de travarmos essa discussão, de tecermos acusações com um ímpeto assustador, tirado sabe-se lá de que recanto do corpo e, depois de tudo, chorarmos lágrimas exaustas mais por atirar (feito projéteis) nossa mágoa um no outro que por real vontade de derramá-las, você simplesmente não me leva pra casa e diz que esse é o preço que pagamos por misturar nossas vidas?

Mas não... Você proclama sua capacidade de estar sempre certo e a gente perde um tempo que não tem. Essa luta é vã e não faz sentido, meu amor. Se há uma guerra entre nós dois, não há como haver vitórias – porque a tua derrota é a minha e vice-versa, assim deveria ser. Por que ao invés de toda essa saliva gasta à toa, você simplesmente não me deita ao teu lado e me diz que não consegue entender por quê não me deixa?

Você não entende que é nas tuas mãos que está a calmaria dessa tempestade? Que nas tuas mãos está a paz, a guerra, a incansável arte de me fazer te querer? Que estou eu, nas tuas mãos? Mas você não sabe o que dizer. E nessa de procurar as palavras certas, ou as mais letais, estraga tudo. Antes que eu esteja a milhas daqui, me leva pra casa. Diz que não me suporta, mas que é assim, insuportavelmente, que você precisa de mim.

Anda, me leva pra casa. Me mostra essa tua capacidade de querer tudo ao mesmo tempo em que encontra a felicidade no nada, no fazer nada. Me olha com esses olhos de insônia e me atira na face que eu não mereço nada de bom e que, por isso, nós nos merecemos. Me tateia inteira, se quiser, e brada no escuro que não há sequer um pedaço meu que não tenha tuas digitais impressas.

Antes que, nesse rio amargo, sejamos dois navios de guerra, afundando, agora ou nunca, antes que pareçamos mais náufragos que desbravadores, mais mortos que vivos, mais ódio que amor. Antes que seja tarde demais e os navios se quedem submersos no nosso ego apaixonado. Anda, me leva pra casa, como a estrela ferida do filme... Porque eu sei viver sem você, mas não gostaria de me submeter a isso. Porque eu não te suporto e é por isso que te amo tanto.


segunda-feira, 18 de julho de 2011

Fac-simile

É que ele não gosta de sentir. Começa tudo achando que não conseguirá terminar. Duvida da própria capacidade de cumprir promessas. Detesta demonstrar fraquezas, ainda que saiba ser dono de uma bela e humana coleção delas. Teme a solidão e finge amá-la. Tem os objetivos muito bem traçados na cabeça, mas é seduzido facilmente por muitos outros e esquece os antigos na memória. Não é facilmente impressionável e por vezes flagra-se num mudo desejo de ser mais ingênuo, mais crédulo. Desgosta de coisas demais pra idade. Detesta magoar pessoas, age sempre com um cuidado milimétrico para não fazê-lo e ainda assim, o faz. Tem medos e não sabe como encará-los. Foge do que o incomoda. Defende veementemente suas crenças e rebate, com a mesma veemência, suas descrenças. Idealista até onde a lei faculta. Não acredita em si mesmo. Ama mais pessoas do que gosta de admitir. Não fala de sentimentos. Não ouve música romântica. Nega a própria sensibilidade. Tenta parecer sisudo, mas é traído pelo carinho que carrega nas mãos. Prefere fingir que não sabe dos sentimentos que provoca. Só chora escondido. Gosta da escuridão. Tem pavor dos próprios erros e prefere fingir que não os cometeu. Instável. Imprudente. Imaturo. Inconstante. Tem medo de assumir riscos. Não sustenta certezas. Quebra mais corações do que gosta de admitir. Cobre-se de uma modéstia que não tem. Finge ser o que não é, se assim puder conquistar a quem quer. Finge o quanto pode e o quanto não pode. Esconde-se sob uma armadura frágil e prefere permanecer alheio ao mundo real. Inconseqüente. Alheio. Conveniente. Intempestivo. Dependente. Frio. Insensível. Covarde. Relutante.

Ele é tudo isso, talvez seja mais, talvez finja mais. Ele é tudo isso e ao seu pescoço deveria estar amarrada a corda-sentença, culpa, irrestrita, indubitável...

Por alguma razão, não consigo encerrar este julgamento da forma que a razão exige. Algo nos olhos dele implora anistia, me revela um pouco de tudo o que, embora eu negue, eu quis ser. Vejo em tudo uma rebeldia que me açoita, um desprendimento que quis ter com todos os errantes que ousaram incluir-me em seu itinerário. De uma forma de outra, ele carrega tanto de mim quanto eu dele.

Talvez eu tenha errado. Talvez não seja ele o réu deste júri. Talvez ele seja eu. Ele foi o que eu permiti que fosse. E pelo poder que me foi concedido, eu me declaro...


(Por força da necessidade: este texto não se refere, sob forma alguma, a algum personagem da vida 'real', muito menos o eu-lírico. Tratam-se de metáforas, fictícias, e qualquer semelhança é mera coincidência).

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Acasos e botequins

Conheceram-se numa dessas espeluncas que são a única opção quando se quer beber às três e meia da manhã e toda a cidade dorme, ou finge dormir. Ela tomava a pior cerveja que existia, só pela necessidade de álcool nas veias que o expediente do dia lhe deixara no juízo. Ele, na mesa ao lado, observava o movimento da rua com olhos desinteressados, o queixo apoiado numa das mãos. Ambos sozinhos. Ela, com uma extroversão quase de inteira responsabilidade do álcool, achou-o lindo – cabelos compridos, olhar grave, barba rala – e tentou puxar assunto numa fala meio trôpega.

“Ei, cara. É uma noite bonita demais pra beber sozinho. Por que não juntamos as mesas?”, convidou.

Ele riu por alguns segundos e respondeu “por que não?” numa voz de baixo-barítono.

Horas mais tarde, a moça semi-consciente estava no banco traseiro do rapaz desconhecido, tropeçando na própria língua ao tentar explicar o endereço. E ele, ainda e incrivelmente sóbrio – mesmo depois de alguns muitos exemplares da cerveja barata – levou-a para casa, serviu-lhe de apoio para subir os degraus da escada e deixou o número de telefone num post-it rosa berrante que encontrou no criado-mudo da sala.

Quando ela acordou, muitos detalhes da noite anterior lhe escapavam da memória, substituídos por uma dor de cabeça infernal. A não ser, é claro, o cara incrivelmente lindo que ela conhecera no bar. Que, no post-it cor de rosa, tinha nome e telefone. Ligar ou não ligar foi a questão da meia hora seguinte. Buscar pretextos, mais alguns minutos. Criar coragem, o dia inteiro. Até que ela admitiu que não tinha nada a perder e discou o número.

— Você não lembra de mim — ela disse, à guisa de cumprimento.

— Claro que eu lembro. Embora sua dicção esteja bem melhor agora — ele riu e ela imediatamente esqueceu-se do nervosismo. — Achei que você não ia mais ligar.

— Fiquei com medo de ter cometido alguma atrocidade ontem à noite. Eu cometi?

— Ainda não... Mas não me incomodaria em ser sua vítima se você for tão divertida sóbria quanto bêbada.

Por três noites seguidas, eles foram companheiros de copo naquela mesma espelunca, que passara de única opção a lugar simbólico. Somente na quarta noite veio o beijo, e passaram a ser companheiros também de cama, num motel cujas condições eram superiores, e muito, ao barzinho de esquina. A partir da sexta noite eles decidiram que o motel era impessoal demais. Sabiam sobre o outro nome, telefone, cor e livro favoritos. “Meu quarto e sala ou sua casa?”, “Melhor o teu quarto e sala, eu moro com gente demais”. E o primeiro mês surgiu quase despercebido. Um belo dia, a escova de dentes dele estava no banheiro dela e algumas reedições do The Who, na estante.

Foram meses incríveis. Não os mais românticos, mas os mais pitorescos da vida de ambos. Estar com ele era a cada dia uma surpresa agradável, fosse na forma de um filme mudo que ele desenterrava num dos sebos da cidade, num vinho quente surrupiado da adega de algum amigo, nos dias que ele chegava da rua mais ávido que de costume e a despia sem dizer nada, como se fazer amor com ela fosse urgência máxima.

Até que ela deu-se conta de que, talvez, o amasse. Foi n’algum momento entre o sexto e o sétimo mês, em que a noite estava mais escura e quieta que o normal, – esporadicamente, as luzes de algum carro lá fora riscavam o teto e só – que ela percebeu. Porque eles se amaram em silêncio. Não da forma selvagem de antes, mas com os olhos resolutos, desejos expressos, sintonia fina. Ele adormeceu poucos minutos depois, enlaçando-a pela cintura, e ela pensou, olhando o teto e seus ocasionais flashes de luz, como seria não tê-lo mais. A dor foi quase física, aguda e implacável. A palavra era uma só: vazio.

E se ela houvesse dito ‘eu te amo’ quando sentiu vontade?

Não havia. E não se arrependia do não-feito. Havia aprendido que dizer ‘eu te amo’ é o tipo de coisa que pode estragar tudo. Mas vez em quando uma curiosidade impertinente a assaltava, indagando qual seria a conseqüência daquelas três palavras desgastadas.

“Qual seria a reação dele?”, ela se perguntava nas noites de nada pra fazer. Não fazia idéia. Não que esperasse ouvir um ‘eu também’. Sabia que ele gostava dela, não havia prova maior que a noite em claro na Emergência, em que ela se contorcera de dor por conta de algum camarão mal preparado destes bares noturnos e ele, desorientado, só conseguiu olhar palidamente para o tubo de soro e segurar a mão dela. “Você é o namorado?”, um dos médicos plantonistas havia perguntado. “Sim”, ele respondera, resoluto.

O problema era ele ser misterioso demais. Não do tipo esquivo, nem rude. Ele apenas não dizia nada e ela precisava de palavras – nada lhe era concreto se não externado de forma clara e audível. Como não bastasse, os olhos do sujeito eram velados. Feito uma janela de vidro fosco – ela nunca obtinha mais que um contorno difuso do que existia neles. Misterioso, complicada. Era de admirar que eles houvessem passado tanto tempo dividindo cama, almoço, pia e jantar – ele até sugeriu que dividissem a escova de dentes, alegando que por suas bocas passavam as mesmas coisas (inclusive seus próprios fluidos corporais), mas a careta horrorizada dela o fez ter uma crise de riso e sinalizar a sugestão como brincadeira.

Enfim, ele foi embora. Sem alarde, sem muitas palavras.

Ela deu-se conta de que o amava e passou a observá-lo dormir, noite após noite, decorando cada detalhe de seu corpo, cada cicatriz, cada imperfeição. Talvez houvesse sido um presságio, um surto de clarividência, algo assim. Tantas crenças haviam passado a permear seu ceticismo depois dele. Destino, coincidências, paraísos astrais. Não podia ser mero acaso.

Ainda mais porque ele partiu daquele jeito mudo. Talvez em resposta à auto-censura que ela murmurava para si todas as noites, vendo-o adormecido. “Covarde”, ela dizia baixinho.

Ele se foi e tudo o que deixou foi uma frase no mesmo post-it cor de rosa do início. Você é muito mais corajosa que eu, ele escrevera, numa caligrafia apressada, porém firme. As reedições do The Who não estavam mais na estante, tampouco a escova de dentes gasta, no banheiro. Havia sobrado uma camisa listrada, de mangas compridas e impregnada com o cheiro dele, uma colônia inglesa cujo nome ela nunca soube. Parecia até proposital, partir e deixar o rastro para trás.

Ele a chamou de corajosa, ela nunca soube bem o porquê. Não chorou, não precisou recolher-se ao luto. Na verdade, ele havia sido tão inacreditável que ela chegou a duvidar da sua existência. Talvez fosse criação de sua mente para preencher aquela vidinha insípida. Quem sabe?

Ele foi embora e só levou consigo as respostas. A ela, restaram as interrogações que ainda a inquietam, de raro em raro. Os porquês. E a reação ao ‘eu te amo’ que ela nunca chegara a dizer.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Inconclusão

Era um corredor longo e negro, margeado do começo ao fim por finas cortinas, também negras, diáfanas e puídas pelo tempo. Pé ante pé, ela caminhou. Não fazia ideia de onde estava ou como havia chegado ali, mas caminhou. As cortinas ondulavam ao sabor da brisa gelada. Para além delas, o nada - os olhos se perdiam na escuridão.

No fim do corredor, algo brilhava. Cônscia da estranheza, do perigo, da ausência de sentido ou coerência, ela prosseguiu, hipnotizada. Algo soprava em seus ouvidos, instigava-a a continuar, a alcançar aquele lume prateado: talvez nele estivessem as respostas para as suas perguntas, mesmo aquelas que sua mente ainda não havia criado.

Seus passos não faziam barulho – ela deslizava pelo silêncio.

Era um espelho. Antigo, bordas rebuscadas, – prata, talvez – maior que ela mesma. A moça encarou seu reflexo pálido por segundo ou dois, antes de perceber o vulto que se aproximava. Paralisada, o coração dolorosamente tentando escapar do peito, ela o viu chegar, pelo espelho. Sentiu sua respiração pesada atrás de si. Encarou seus olhos de vidro, que sustentavam os dela com tanta intensidade que, se fosse possível, ela coraria ao mesmo tempo em que sua tez perdia toda a cor.

Ela o desejou.

Ainda fitando o espelho, ela o viu suspirar, tristemente. Sentiu que ele ia-se embora. Não, ninguém nunca a havia olhado daquela forma! Ela tentou dizer-lhe, com os olhos, mas ele balançou a cabeça, parecendo ainda mais desolado, e deu um passo para trás, em despedida. Ela virou-se, ia persegui-lo, tomá-lo nos braços.

Mas ele não estava em lugar algum.

Estarrecida, ela encarou a escuridão que se perdia no horizonte e voltou o olhar para o espelho. Lá estava ele, em pé atrás dela, derrotado. Parecia indagar ‘entendeu agora?’. Aproximou-se, tentou tocá-la, hesitou – por fim, deu as costas e desapareceu no corredor.

Ela acordou.

Olhou ao redor e suspirou, aliviada: sonho. Fora dormir impressionada com as histórias de fantasmas contadas por seus primos da fazenda e ali estava o resultado. Acendeu a luz, fechou as grandes janelas em arco, conferiu os armários. A julgar pela escuridão lá fora, todos já haviam se recolhido.

Ela recostou a cabeça ao travesseiro e encarou o teto. “Ele foi o primeiro noivo da nossa bisavó”, ecoou a voz do primo mais novo em sua cabeça. “Mas foi encontrado morto, pendurado pelo pescoço numa das árvores da fazenda. Há quem diga que foi assassinato”, prosseguiu o adolescente “já que a família de um coronel das redondezas estava muito interessada em casar o filho com a bisa. Unir as terras, coisa assim”.

Ela ouvira a história à beira do rio, comendo cajus com alguns dos primos e tios. Férias na fazenda. Eles sempre gostavam de assustá-la e até conseguiam, quando ela era mais nova. Os anos vieram, o ceticismo também, mas ficou o pretexto – era só questão de reunirem-se ao redor da fogueira, compartilhando histórias e mantas de lã, olhando as estrelas até que o frio fizesse as vezes de toque de recolher.

Naquele dia, em especial, seu tio dissera, com o olhar saudoso:

— Vocês não deviam contar essa história com esse ar tão leviano, meninos. Vovó nunca se recuperou de verdade da morte do primeiro noivo. Ela vivia com o olhar perdido, sobretudo nos últimos anos de vida...

— Então essa história é real, tio? — ela indagou, chocada.

— Sim, sim. Claro que a parte dos fantasmas é brincadeira boba dos seus primos... Mas esse rapaz, Leonardo, existiu. Aliás — ele olhou-a com um sorriso de saudade nos lábios — você se parece muito com vovó Eulália, sabia?

A moça em preto-e-branco no álbum de fotografias, de fato, parecia-se com ela. Exceto pelo olhar, incompleto, distante – mesmo rodeada de marido, filhos, mesmo que cada foto revelasse razões de sobra para sorrir. “Mas é muito fácil elaborar a felicidade a ser eternizada nos fotogramas”, pensou. Sobretudo antigamente, naquela época ainda perplexa com aquela máquina capaz de congelar momentos.

Naquela tarde, ela caminhara até a pequena capela centenária, no alto de um morro, vigiando toda a fazenda. No cemitério, repousavam gerações. Bisa Eulália dormia num dos túmulos mais recentes, de mármore branco. Num canto mais afastado, à sombra de um carvalho, um túmulo cinzento e solitário encerrava Leonardo, que Eulália, um tio lhe contou, insistira para que fosse enterrado na fazenda. A foto oval revelava um rosto grave, preto e branco, numa expressão de pesar que parecia antever seu destino. “A perfeita expressão para ilustrar a morte”, ela pensou, pousando uma flor branca sobre a sepultura gasta.

Recostada à cabeceira da cama, ela relembrava o dia. Como a história a tocara. Como aquela aura de incompletude rondava toda a fazenda, mesmo quase cem anos depois. Tentou ler um romance de banca de revista que estava no criado-mudo, mas seus pensamentos ainda estavam na história interrompida de sua bisavó.

Até que uma lufada de vento gelado a fez erguer os olhos do livro. A janela em arco, que ela fechara algumas horas atrás, estava aberta. Ela avistou ao longe a capela, o cemitério, o carvalho. Trêmula, percebeu que um lume prateado, o mesmo de seu sonho, emanava da sepultura cinzenta. Levantou-se, vestiu um robe, calçou seus chinelos. Era como no sonho – ela ignorava os porquês, só sabia que precisava ir até lá.

Vaga-lumes pairavam na noite. Ela sabia que ele estaria lá antes de vê-lo, corpóreo, parecendo material e ao mesmo tempo um eco distante – uma memória. Ele mantinha os olhos nela como se nada mais enxergasse. Não era desejo, não era mágoa, não eram ordens, era apenas a constatação.

— Não, Leonardo — ela ouviu-se murmurar — eu não sou ela.

Ele assentiu.

— Me desculpe — ela continuou — eu queria terminar essa história por vocês, eu queria...

Ele sinalizou que ela se calasse. Aproximou-se, um sorriso melancólico nos lábios, mudo. Levou os dedos aos lábios, encostou-os no rosto dela, que nada sentiu, mas imaginou.

— Ela morreu te amando.

Ele sorriu mais uma vez. Permaneceram ali, estáticos, por minuto ou dois, até que ele pareceu reunir toda a coragem que não tinha e, com um gesto, mandou-a embora. Ela balançou a cabeça, negativamente, mas ele tentou tocá-la novamente, como se quisesse fazê-la perceber que não havia nada a ser feito.

Ela entendeu.

Despertou horas mais tarde, sem saber se sonhara ou não. Aos seus pés, uma flor branca repousava.

domingo, 15 de maio de 2011

Crônica do Inominável

E um dia novo vem nas entranhas deste céu alaranjado, um dia novo e um porvir.

Alguns de nós continuarão com sorrisos nos lábios e na alma, e farão amor como criança que descobriu coisa nova. Outros, acordarão com o pensamento longe, num sonho irrealizável ou na menina que os expulsou de casa a pontapés. E a menina pensará em seu vizinho bonito por algumas horas, e por outras, deixará a vida passar. Talvez venha a remoer por hora ou duas uma mágoa infundada, nada que seu coração irrequieto permita demorar-se.

Eu, bem desperta, sei o que me virá: um coração amargando o desfile na corda bamba, entre ser, não ser e estar, sem saber se o que sente é o que sente ou se muda conforme o sol assume seu posto.

São cinco da manhã e o sono não vem.

Vem-me antes o abismo das palavras não ditas, que sufocaram na língua antes que se materializassem no som. Vem-me a dúvida de saber suas conseqüências. Vem-me a ânsia de querer dizê-las quando já é tarde e não existe mais o que as motive.

Há um quê de trágico nas palavras ditas, não é? Uma vez expostas aos condutores auditivos do mundo, criam vida e tornam-se irrevogáveis, não se pode voltar atrás. E paira no ar a incerteza diante do que é definitivo. Arrependimentos, confirmações, coincidências, tiros no escuro.

Eu bem que podia dizer tantas coisas... Coisas que me preenchem a faringe e as falanges, que pedem, imploram para ser soltas, para concretizarem-se no plano real, mesmo que depois sejam dissolvidas pelo ar, pelos ouvidos, pelas mentes.

Mas é tarde, me atrasei. Fica aqui a eterna curiosidade, o eterno ‘e se’ envenenando minhas noites, essa cova aberta, essa interrogação a ser sepultada.

Quieta fico. Diante do insone, resta a madrugada e os pensamentos, mal-vindos ou não. Diante do intraduzível, resta o silêncio...



sábado, 23 de abril de 2011

Em suma

Você morre.

Triste é te ver ir-se assim, em silêncio. Seria melhor se você partisse sangrando, como eu mesma sangrei. Se tingisse de vermelho todo o caminho que fez questão de manter imaculado, com o cuidado de percorrer apagando as próprias pegadas após cada passo. Mas não – você emudece e morre.

Parece que nós dois nem fomos dois. Parece que nem te deixei cicatrizes, estas de que estou repleta. Parece que eu te fui um disfarce. Será que fui?

Me fere esse silêncio de sempre. Agride meus tímpanos, fermenta-se nos meus instintos. Eu queria te gritar, gritar. Te entregar todas as culpas que não pertencem a ninguém, sequer existem. Te rasgar a garganta com esse vazio que você me impõe e no qual me imerge. Mas você morre. Quieto, nulo, morre. Teu pulso não me pulsa mais. Teus dedos já não me tateiam. Você já não me retém o rosto na boca. Você morre.

Te imitando no silêncio, eu vou te deixar ir, sim. E nem precisa pagar a conta de luz, que não quero você aqui a cada lâmpada que eu acender. Já basta você nos lençóis, na garagem e no jardim. Já basta a sua morte, em mim.

Você tira a própria vida. Morre pra reviver n’outro lugar. Te enterrarei sem transigência. Sei que não cabem queixas onde não existiram promessas, mas mortes são assim – cavam esse oco amargo na alma e, antes de cura, o tempo se faz algoz. E você morre quieto. Sem saber que morre. Querendo, talvez, morrer.

Você morre e eu nem chorei.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Veni, Vidi, sed non Vici

Por que a pressa, mulher? O tempo é fluido e somos nós nossos próprios prisioneiros, a carne é nosso cárcere. Que sentido há em adiantar o inevitável, se é liquido e certo que ele nos encontrará, se mal nos mexemos por arbítrio nosso, me diz? Por que a pressa?

Nós dois já misturamos, no mesmo leito, sonhos, suor e saliva. Já te invadi pele adentro, sem pensamentos outros que não você. Já enlaçamos os olhares e braços e pernas e fizemos o mundo girar na nossa métrica. Por que a pressa?

Se conheço tuas vontades e elas são irmãs das minhas, por que tanta ânsia? Desacelera, mulher. Em nada somos diferentes quando somos senhores dos nossos quereres... E meus dedos trazem impressa neles tua geografia, inteira, inexata, tão minha.

O que é o tempo pra nós, que sabemos conter o infinito em cada segundo? Sem pressa, mulher. Senta um pouco, me olha, bebe meu café. Temos o tempo que nossa vontade permitir. Esquece um pouco as minúcias, que somos criminosos mas nenhum julgamento nos cabe. E a mim, só cabe você.

Por que a pressa? Pressa é tudo o que vejo nessa selva de concreto, nesse caótico mar de luzes. Esta urbe não me alimenta, antes me vampiriza – sou mais autômato que homem. Se você me surgiu com suas cores e matizes estranhas a esta floresta de ferro e pedra, por que se apressar? Bebe uma cerveja, um conhaque, ou me bebe – tanto faz. Minha sede é outra e só morrerá, mesmo que pouco, se você estiver aqui.

Ah, mulher, minha mente tem vagado mundo afora. Achei meu lugar e a ele não pertenço – sempre externo a mim e a tudo, mero apêndice, mero fato. Eu, que amo tudo o que diz respeito ao meu exílio – e meu exílio que parece não me amar de volta.

Não estou em mim, mas você está. Não me encontro aqui, mas você me achou. Não se perca de mim, mulher. Fique aqui até que eu durma. Fique até amanhecer. Ou fique pra sempre, se quiser. Só não se apresse. A noite sequer cruzou o limiar da madrugada... Por que a pressa?


segunda-feira, 28 de março de 2011

Ah, se eu vou

Ela finge não querer ninguém, mas eu sei que é a mim que ela quer. Pensa que me engana, que não vejo seus olhares de súplica velada, seu jeito de quem não quer ir embora mas vai, apenas pra que eu chame de volta. E quando eu chamo, ela vem, mais altiva, uma indisfarçada vivacidade em cada passo, o sorriso dois dedos maior.

Ela acha que não percebo quando ela esquece a mão sobre a minha por segundo ou dois, até que, num ensaiado sobressalto, ri e a retira, deixando-a desprotegida e disponível sobre a coxa. Ela pensa que não sei que é pra mim cada floral estampado que ela desfila pelo calor destas ruas e cada cor que ela escolhe para estampar nos lábios. Ou que não sei que são para mim os sambinhas que ela canta no chuveiro, os trechos mais atrevidos das canções duas oitavas acima.

Tinhosa... Finge indiferença, tenta pôr um blasé não-me-importo-se-for-você-ou-qualquer-outro no olhar debochado, mas tropeça no sorriso. Não quero soar petulante nem nada assim, entendam. É que ela muda quando me vê. Meio que se ilumina, o riso vem fácil, os olhos falam. E é só comigo, mais nenhum. Ela acha que eu não percebo as venezianas da janela dela se alargarem um pouco, só um pouco, quando eu passo. Pensa que eu não a vejo suspirar na janela às onze e poucas, quando todo o bairro dorme e eu me divido entre o cigarro e o violão.

Ah, mocinha descuidada, tome tento. Tome tento, que por mais que eu saiba manter a compostura, noite dessas acabo por perder a linha. E então estarei aí, debaixo da sua janela, eu e meu violão. Só pra assegurar que mais ninguém, mais ninguém mesmo, vai merecer esse seu olhar de promessas. Só eu.



domingo, 20 de março de 2011

Mímesis

Café bem quente, com leite cremoso e espuma nas bordas, é você. É também acordar e sentar-se à beira da cama, queixo apoiado numa das mãos, uma espécie de ‘o pensador’ sonolento. É você.

Abrir a geladeira e pousar a testa na superfície gelada por uns três segundos, enquanto o mundo não censura pela energia elétrica gasta à toa, é totalmente você. É você inclinar um pouco as costas para sacudir os cabelos, colocá-los no lugar – como se precisasse, francamente! – e tentar tocar o teto com as mãos. E também deixar as sandálias emborcadas no chão, coisa que muita gente julga chamar a morte (e você ri).

É você conversar com o teto em silêncio por minutos muitos, num alheamento de tudo e de si mesma, se Vinícius me permite a paráfrase, até que o mundo real a puxe de volta e vem a surpresa pela passagem despercebida do tempo. É você desdenhar de crenças, antigas e novas, e é você também separar o biscoito wafer em camadas antes de comê-lo.

É você abrir um documento em branco no Word e encarar a tela branca por muito, muito tempo, praguejando baixinho. É você deixar ideias fugirem. É você capturá-las de volta. E é você, embora ninguém queira admitir, ter alergia ao excesso de senso comum. É realidade demais pro teu gosto. E pro meu.

É você ser insolente nas horas mais inoportunas, em que tudo o que precisa ser dito é uma destas convenções chamadas ‘etiqueta’. É você ir até um lugar em total concentração e esquecer-se o porquê de ter ido assim que chega. É você travar alguns diálogos ocasionais com o chão. Chutar latinhas. Recolhê-las e jogá-la num lixeiro próximo (enquanto lança impropérios pouco ortodoxos ao filho de meretriz que largou lixo na rua).

É você detestar futebol e ainda assim assistir partidas entre seleções, só pra ter o que comentar em rodas de amigos. E detestar alguns dos próprios sentimentos, também. Empurrá-los para o fundo da alma. Jogar mil baús por cima. E depois retirá-los, todos, observar a pobre emoção maltrapilha e, num suspiro, colocá-la de volta no devido lugar. Só que ninguém precisa saber disso.

É você tudo isso. E acho que ando você demais. Será que, algum dia, volto pra mim? Ou melhor... Será que eu quero, bonita?

terça-feira, 15 de março de 2011

Imitation of Life

De início, eu não entendi o seu olhar quando você escolheu um CD qualquer e pôs no som do carro. Uns dois segundos de silêncio, até que o aparelho, que não era dos mais novos (“hora de trocar, não acha?” “ah é, lindinha? Você vai pagar?”), começou a tocar. E nos primeiros acordes da música, eu entendi.

— Seu filho da mãe! — exclamei, arregalando os olhos.

Você riu e cantou.

Charades, pop skill, water hyacinth named by a poet... — sua voz nunca me soou ruim. Você até que era bem afinado. Mesmo cantando aquela música em questão.

— Por que você faz isso comigo, seu infeliz? — franzi o cenho. Já fazia tempo que eu não conseguia ouvir aquela música. Você era a causa. E sabia muito bem.

— Por que essa música é boa demais pra você ter alergia a ela. — você entregou, o sorriso ainda maior. — I don’t want to hear you cry...

Suspirei. Há meses não conseguia escutar a tal canção sem lembrar de chuva, muita chuva. Você parado no meio da rua, trêmulo, encharcado. E eu gritando o quanto te odiava e o quanto nunca mais queria te ver. E você respeitou meu desejo, se ‘nunca mais’ significar quatro meses de silêncio intermitente. Apaguei tudo o que dizia respeito a você da vida, instâncias real e virtual, porque até mesmo os rastros digitais, orkut, facebook, twitter, a parafernália toda, me faziam mal. Sim, porque te odiei te amando. E te amando, qualquer referência sua seria um pontapé no cotovelo, daqueles bem certeiros, na articulação.

Come on, come on, no one can see you try...

O motivo foi idiota, dizendo o mínimo. Na verdade, foi daquelas bobagens que a estupidez de gente hiperdimensiona – bobagem tão boba que fiz questão de esquecê-la. Boba e reincidente. Eu não sabia lidar com minha instabilidade de série, você, muito menos... Deu no que deu.

You’ve got it all, you’ve got it sized… — você continuou a cantar e me instigava com os olhos.

O CD que você me deu de presente – aniversário de namoro, não lembro de quantos meses (na verdade, nunca fui muito fã de comemorar os meses, vitória mesmo seria se alcançássemos a marca de anos) – ficou decidido como nossa trilha sonora de casal ‘alternativo’. Tudo bem que isso soou juvenil aos meus ouvidos, tão juvenil quanto comemorar meses de namoro, mas fazer o quê? Você estava empolgado feito uma criança e eu, caidinha por você. Que é bobo, mas tem um senso de humor agudo e a inteligência de quem leu muitos, muitos livros. Fora que a gente ria demais um da cara do outro (e das caras alheias). Enfim...

Like a Friday-fashion-show-teenager freezing in the corner… — juntei-me a você, na minha voz rouca que você definia como ‘de intérprete de bossa nova’. Eu detestava bossa nova, e você sabia (“Miúcha é a mãe!” “É um elogio, ô ignorante!”).

Trying to look like you don’t try…

E depois de todo o hiato, dois bimestres inteiros de faculdade em que eu consegui perder duas das matérias obrigatórias; várias noites insones olhando fixamente para o visor do celular, achando que a qualquer momento você ligaria; duas ocasiões em que você realmente ligou, às quatro da manhã, mas eu não tive coragem de atender porque não sabia de fato o que iria dizer; quatro encontros casuais nos locais mais inusitados, que eu passei a freqüentar justamente por não ver neles lembranças suas (o que não adiantava muito, já que não ter estado ali com você poluía o lugar inteiro de lembranças nossas)... Você me ligou em horário comercial, e eu resolvi atender.

That sugar cane that tasted good, that’s cinnamon, that’s Hollywood, come on, come on, no one can see you try...

Você quis me ver. Quis passar aqui em casa às seis. E quando senti as reações do meu corpo à sua voz – a umidade da boca fugida inteiramente pros olhos, taquicardia, tremor nas mãos – pensei, puta merda, ainda é amor. Receei que te ver talvez jogasse areia em antigas feridas, mas percebi que a alma gritava por isso. E quando a alma grita... Só pode ser saudade.

— Por que você me chamou aqui?

— Eu já disse.

— Não tente me convencer de que é por causa dessa música.

— Do CD inteiro, que sei que você quebrou num acesso de raiva...

— Quem te disse?

— Sua irmã.

— Ah.

— Eu suporto tudo. Não te ver mais, que você me odeie pra sempre e toda a eternidade por não ter te entendido como devia, que você me difame... Mas não que você deixe de ouvir esse álbum do R.E.M. É bom demais.

— Você esperou quatro meses pra me dizer isso?

— Ahn? Tá... Tem o adicional de que eu te amo e tudo o mais, mas faz tempo que eu desisti de tentar porque a gente tem se ignorado, né? Encontros, ligações... Nada deu muito certo, então...

— ...

— Tava doendo, sabe. Você não pode me culpar nem me acusar de covarde. Tava doendo e eu achei melhor tentar te esquecer.

That’s who you are, that’s what you could...

Fiquei muda até o refrão. Que cantei, sorrindo acanhada, e você sorriu de volta. A música estava bem alta, mas eu pude jurar ouvir teu coração martelando numa velocidade de doer, ou talvez fosse o meu próprio. Num assomo de coragem, nos beijamos – não sei de quem foi a iniciativa, quem beijou quem primeiro. Mas seus lábios tinham o gosto de sempre, trident de canela, e toda a falta que eu senti de você me acometeu de uma vez.

— Ah — você disse ao meu ouvido, quando nos separamos — você devia ouvir a versão acústica dessa música... É sensacional.

…come on, come on, no one can see you cry.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Às avessas

Eu te acho um completo filho da puta, sabia?

Mas ainda assim, sou capaz de te perdoar.

Pela cara que sei que você vai fazer ao receber a acusação, arregalando os olhos daquele jeito tão seu de se mostrar indignado – que sempre me fazia querer te beijar (outra razão pela qual te perdoar, aliás) –, eu te perdôo.

Eu te perdôo por saber me decifrar tão bem que chega a assustar. Por saber de certos pormenores meus que prefiro que o mundo desconheça, te perdôo. Por ter me visto – e me tido– mais vulnerável que qualquer outra pessoa no mundo, eu te perdôo.

Eu te perdôo por toda a insônia, pela ânsia e pelo desvelo. Te perdôo por ter sido exatamente o que precisei e por ter deixado seu gosto nos meus lábios. E na minha alma. Por me fazer não querer sentir outro gosto que não o teu, eu te perdôo.

Eu te perdôo por ter rido de toda besteira que falei e por me ter feito verter lágrimas de tanto riso. E pelas lágrimas de dor também, estas que chorei a salvo do mundo, sem testemunhas nem cúmplices. Te perdôo pela dor antecipada e pela delícia de cada dia que pude chamar de nosso. Por tudo isso, te perdôo.

Te perdôo por ter secado o sangue de uma unha que arruinei no chão cimentado e por ter culpado minha ébria afobação. E pela maldita riforcina que ardeu até os poros, mas você, muito sério, ministrou alegando extrema necessidade, eu te perdôo. No fundo, eu sei que você estava adorando me punir pelos excessos.

Te perdôo pelos livros emprestados sem consentimento prévio e até pelo amassado da capa ao tê-los de volta. Te perdôo por roubar meu sono. E meus chocolates favoritos, que você conseguiu encontrar no mais inencontrável dos lugares. Até por zombar dos meus discos de vinil e por espirrar feito um condenado com o cheiro de mofo das capas.

Te perdôo por me conter nos seus abraços. Te perdôo por ter respeitado meu nervosismo constante e onipresente, e por ter me permitido simplesmente ser – sem amarras, sem poréns, sem porquês. E mesmo que pouco, te perdôo por ter me aceitado.

Por me ter feito ceder, te perdôo. Por não ter sido o primeiro, te perdôo. E por não ter sido o último. Pelo sorriso permanente que você pintou nos meus lábios. Por ter me deixado pintar os teus de outra cor. Pelo silêncio confortável, eu te perdôo.

Por me ter olhado nos olhos e me feito acreditar num ‘algo mais’ que podia não ser só meu, eu te perdôo. Pela sinceridade, aguda, extrema, absoluta. Por ser belo, forte, terno – ao seu modo, eu te perdôo. Até mesmo por ser você – por ter nascido.

Por te querer. Por te perder. Por sentir tua falta. Por te ter tido. Por serem três da manhã. Por ser ridículo. Pelas lágrimas de agora que acho justas porque foram sorrisos e risos e sonhos de ontem (não que eu os tenha alimentado – você o fez por mim e ainda assim, te perdôo). Por querer te mandar ao inferno. Por querer que o inferno seja ao meu lado. Por fazer parte do meu passado. Te perdôo por tudo isso, até mesmo por você não ter razões pelas quais ser perdoado.

Só não te perdôo por não ter sido capaz de me machucar. Por isso, eu não vou saber te desculpar. Nunca.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Aval


Os braços abertos, ela tentava equilibrar-se no muro baixo, rente à areia do mar. O vento era forte e os cabelos chicoteavam-lhe o rosto. Ele, mais alto, acompanhava-a, um pouco atrás, para ampará-la caso ela trocasse os passos – coisa que ele estava absolutamente certo de que aconteceria logo.

— Você não confia em mim mesmo — ela disse, já perto do fim do muro.

— Claro que não! — ele respondeu para as costas dela, um maldoso sorriso nos lábios — Com esse cerebelo desregulado que você tem, como eu poderia confiar?

Ela virou-se para olhá-lo, numa expressão cômica de tão indignada e, ao fazê-lo, desequilibrou-se e caiu na areia.

— Heh! Eu disse! — ele gargalhou, estendendo a mão para ela. — Que confiança você quer merecer, desse jeito?

Ela deu de ombros e, apoiando-se nele, içou-se para cima do muro novamente. Mostrou-lhe a língua antes de prosseguir em seu intento, bambeando ligeiramente.

— Que eterna criança que você é... — ele cruzou os braços, ainda atrás dela.

— No momento em que você quiser a adulta ranzinza, é só pedir — ela respondeu, sem olhar pra trás, uma nota de irritação na voz.

— Ei... Você ficou chateada?

— ...

— Ei, ei, eu não estou reclamando nem nada assim.

Ela virou-se para ele mais uma vez, contrariada.

— Ah, não? — ela replicou, entredentes, com um ar de pueril exasperação. Que ele achava bonitinho, por sinal.

— Claro que não! Se você fosse uma adulta ranzinza, com certeza não estaríamos aqui hoje. — respondeu o rapaz, rindo, estendendo a mão mais uma vez.

— Não, não. Não quero sua mão agora. Vamos fazer assim: você se afasta. Não fica atrás de mim. Vamos ver se eu não consigo cruzar esse muro de ponta a ponta?

Diante da obstinação dela, ele riu mais uma vez.

— Okay... Você é quem manda, moça corajosa.

O rapaz afastou-se, indo recostar-se a uma árvore próxima. Ela respirou fundo e abriu os braços. Ele a viu atravessar o muro uma, duas, três vezes, e riu-se da expressão compenetrada e obstinada da moça. Tão boba ela, tentando provar que podia!

— Viu? — ela gritou, sorridente, já na quarta travessia. — Sequer vacilei. Quem é que não merece confiança agora?

— Você, besta. Por perder seu tempo me provando uma bobagem dessas — ele respondeu, os olhos claros faiscando de malícia.

— Seu f...!!!

Ele gargalhou. Ela sorriu, contrariada, e correu até ele.

— A sua cara nessas horas é impagável... Você devia ver, é sério — ele disse, tentando desviar-se dos tapas da moça.

— Você não presta, criatura. Não presta, de verdade.

— Eu digo que sou mau... Você que não acredita em mim.

— Na-não. — ela balançou o indicador, marota. — Você finge que é. Porque uma pessoa má não acudiria uma moça pseudo-embriagada numa noite de réveillon... Não cederia a camisa branca para ela sentar no chão... Não seguraria as mãos geladas dela, enquanto ela se refaz de uma única taça de champanhe...

— Que espécie de homem você acha que eu sou, pra recusar oferecer apoio a uma donzela em perigo? — ele respondeu, emburrado. — Fora que eu não fui o único. Você ganhou massagem nos pés e uma fatia de bolo de chocolate, e não fui eu o gentleman que fez isso.

— É, eu sei. Vocês todos foram ótimos naquela noite, nunca me esqueci... Mas... Um homem mau também não ficaria vermelho ao ouvir isso! — ela riu, apertando-lhe as bochechas.

— Oras...

— Eu sou a razão da sua insônia. Isso é uma prova definitiva de que você não é mau.

— Mocinha — ele cutucou-a na cintura — eu não tenho culpa se você não tem um pingo de juízo e oferece seu coração aos quatro ventos. Quase sempre, cai nas mãos erradas... E quando não cai, fica aí, torturada por amores não correspondidos. Então, o que me resta? Cuidar de você. Pra evitar que você faça besteira. Ou te consolar, quando a besteira acontece.

Ela o abraçou, radiante, e afastou-se com um sorriso de ponta a ponta.

— Você tem feito isso bem. Muuuuuuuito bem.

— Heh...

— E pra que você não deixe de fazer... — ela correu para o muro, mais uma vez — vou te dar cada vez mais razões pra cuidar de mim!

— Ah, minha úlcera...


(A você, que sofre de úlcera há dois anos por causa de uma mocinha serelepe...)


terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Irrevogável

— Se eu me perder de você, talvez me ache de novo.

— Por que você condiciona uma coisa à outra?

— Por que foi você que me tirou de mim. Mas não estou responsabilizando você, nem nada do tipo.

— Imagina se estivesse...

— É sério. Eu não te privaria da culpa se ela existisse. Mas não existe. Não em você.

— E ainda assim, não consigo me sentir aliviado.

— Você fez o que tinha que fazer...

— Fazer você se perder de si? Queria ter tido uma missão mais nobre...

Ela gargalhou. E ele nunca havia ouvido um riso tão triste e alegre ao mesmo tempo.

— Não poderia ser mais nobre, meu bem! Eu me perdi, é verdade, mas tive o absurdo nas mãos... Não há nada que me seja mais precioso e importante. É isso o que eu devo a você. Foi essa a sua missão. — ela respondeu, terna, tomando-lhe o rosto nas mãos.

— E agora a gente tem que se perder um do outro? — ele aconchegou-se a ela.

— É. Precisamos voltar pras nossas vidas.

— E isso não é parte dela?

— É sim, a melhor parte. A parte que despreza a realidade, as convicções, as medidas, a razão... Você me deu o melhor de mim, eu, que já andava poluída de tanta razão nas minhas veias.

— Mas então... Por que não estender isso?

Ela riu, mais uma vez, e enlaçou-o como se quisesse retê-lo em si para sempre.

— Porque é assim que eu quero me lembrar de nós... Inteiros. Felizes. Antes que alguma bobagem venha erodir o que somos. Prefiro congelar nós dois assim.

Ele suspirou e assentiu. Levou o polegar aos olhos dela e, delicadamente, limpou duas lágrimas que brotavam. Beijou-a na testa, nas maçãs do rosto, na ponta do nariz. Ela estremeceu.

— Eu só não quero que o mundo nos estrague... — ela balbuciou, a voz embargada.

— Sssshhhh.

E ele colou os lábios nos dela.



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Mútuo

Era um par de horas, mas poderia ser uma vida. Não era amor, mas poderia ser melhor, mais que isso, até: uma conseqüência. Sem punições à vista, sem nada que ofuscasse a importância daquele agora.

Eles estavam frente a frente. Entre goles discretos, monossílabos e meios sorrisos, algo muito maior se insinuava, cuja medida exata eles não tinham – não precisavam ter, na verdade – mas podiam sentir e reproduzir em cada gesto, mínimo que fosse.

Conheciam-se, mas fingiram-se estranhos um ao outro. Achavam melhor redescobrirem-se devagar, feito crianças ignorantes da mesquinhez adulta de viver em guerra contra o tempo. Não havia necessidade de pressa, já que nenhum dos dois tinha a mínima intenção de fugir. Por que não a rendição, lenta e completa, se ali havia tanto a saber? O tempo, junto a tudo o mais que não fosse eles dois, fora relegado ao patamar das coisas desimportantes.

Então”, ele disse, com os olhos.

Então?”, ela respondeu, com o olhar.

...?”.

Eu temo, e você sabe”.

Você teme, e eu sei... E temo também”.

Tememos”.

Mas quero”.

Queremos, então”.

E então...?”.

Por que havia tantos senões diante daquele querer de duas vias? Era apenas questão de reinventar o mundo que impossibilitava aquele recém-nascido ‘nós dois’. Ele já parecia, em seu mutismo, refeito. Ela, no entanto, ainda desconhecia a bravura de despir-se dos anos. E muitos foram os minutos de silêncio, torcer de mãos e olhares atravessados. Por muito tempo, ela preferiu não notar o clima que se desenhava nítido ao seu redor. Tentou pôr a seu favor o desaviso – por desconhecer que caminho tomar – até que ele calou num beijo aquela boca muda de porquês.

Foi quando o renovar de ideias não pareceu das empreitadas mais difíceis.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Aos meus

Não me digam pra não me apaixonar. É o convite pra que eu me apaixone de fato. Às vezes, eu nem chego a cogitar paixão – meu sorriso é apenas o enlevo de sintonizar as ideias em par, leve pela grandeza do que dois juntos podem fazer. Às vezes é só a pele saciando a fome. Até que alguém mencione a palavra-sentença. Sabem a teimosia da mente de fazer o que lhe proíbem? Aí, me apaixono.

Também não me peçam cuidado ou controle. A pequenez das regras em nada se aplica às imprevisíveis paixões. Se não for pra ser louca, de que adianta? Razão e paixão não andam juntas e a vida seria insossa não houvesse doidices a cometer de vez em quando. Amar não é seguro, mas é necessário.

Se me encontrarem enamorada, me ouçam. O sorriso será imenso e eu hei de querer dividi-lo. E caso haja dor no olhar, saibam, é que é paixão de um lado só. Então me abracem. Mas não precisam dizer que logo passa e que em breve outras insônias virão substituir a anterior. Disso tudo eu sei. Quero saber apenas que posso tomar-lhes a insanidade emprestada, só até a saudade se aquietar e minha gargalhada achar vias de voltar e soar verdadeira.

Se me virem cega de amor, não há muito que se fazer. Só não me deixem esquecer de mim. Nem de vocês. Se eu lhes virar as costas, sejam duros nas palavras e lembrem-me de quem são. Alertem-me, ameacem-me. Lembrem-me de que há certos tipos de amor mais duradouros que aqueles que ameaçam arrebatar-nos o coração e nos põem a orbitar, em presença em pensamento, em torno de uma só pessoa.

De vocês, eu quero a loucura, o avesso, a risada e os contrapontos. Quero guiá-los caso haja percalços, quero estar firme para que possam tropeçar e encontrarem uma mão estendida. Porque são vocês minhas metades encontradas ao acaso. São vocês meu porto seguro, meu equilíbrio, minha capacidade de me manter sã. Estejam por perto, que sozinha eu não me acho.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Sentença

Cá estou eu, mais eu mesma que nunca, em minha redoma... Quase louca.

Nem a madrugada, nem minhas unhas, nem minhas convicções, nem nada que proclamei sólido nesta vida – essas coisas que a gente constrói na cabeça e salpica de chão, só pra não haver risco de vê-las fora do controle – nada é o bastante. Eu sou eu. E isso me enlouquece.

Às vezes me vem uma insanidade doida (perdoe-me, cara Língua) e tudo o que me resume é uma vontade de indagar ao Universo: por que tanta alma num corpo só? Mas não é questão de alma. É questão de não saber ser pela metade, ou é a patologia adolescente mais enfadonha do mundo: hiperdimensionar as coisas. Porque é isso. Se é no meu coração que se instala, me parece maior e mais intenso do que é de fato.

E o que se faz, vida? Revoga-se o direito sobre os próprios pensamentos até que alguma tsunami venha roubar-me o fôlego? É essa mesmice que me causa taquicardia, e não as emoções desmedidas. Não as estou absolvendo. Elas são verdadeiras vilãs. Vampirizam-me, parasitam-me. Mas me enchem de algo que não sei – não consigo – viver sem. São meu vício, a minha droga. São a minha maneira de sentir-me viva, inteira, completa... Livre.

Perdoem-me, que eu só sei viver de amor...