domingo, 20 de outubro de 2013

Perdão você

(post fruto do meu 'limbo textual', onde eu guardo as coisas que termino mas não acho que devam ser postadas. A não ser que haja um bloqueio criativo, como é o caso agora. Agradeço à moça que me emprestou sua história e dedico a toda e qualquer pessoa que já se sentiu assim. Afinal, quem nunca?)

Me perdoe se gosto das coisas claras, das cobranças bem expostas, das responsabilidades traçadas previamente. Me perdoe se eu ajo de acordo com o ambiente, se me apaixono se me dão chance, se quero quando me querem também. Peço desculpas por ter sido eu mesma, espontânea, por ter fluído como o vento que me deixou na sua porta. Rogo perdão pelo silêncio que adotei quando percebi que de você não teria mais que a língua. Peço perdão pelo silêncio e distância que surgiram quando você os fez surgir primeiro.
Me perdoe por ter falado de quem me tirava o sono quando você falou de quem tirava o seu. Me perdoe por ter feito de você um pequeno porto seguro onde ancorar todos os meus poréns. Me perdoe por ter insinuado algo mais no nosso prosseguir. E também peço perdão por ter inibido toda e qualquer ideia de ‘algo mais’ diante da sua indiferença.

Me perdoe por ter posto água nessa sopa conspiratória que cozinha na sua mente. Me perdoe se te fiz sentir uma peça, coisa que você não era, mas devia ser. Agora, eu me redimo. Pronta pra te ver reduzir-se ao nada.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Com a luz

(pro @eduardoleite, que me emprestou palavras e uma história. Seu Marcelo Camelo também, algumas. Pouquinhas. E Rodrigo Amarante, o tal cantor de voz etílica).

De tudo o que havíamos sido, só restou um rolo de filme por revelar.
Lembro que ele achava engraçada essa minha nostalgia analógica, de querer registrar tudo em negativos e revelar depois, mesmo que só pra mim. “Por que você não expõe?”, ele me perguntava, e eu dava de ombros. Acho que eu tinha medo. Medo da fugacidade dos olhares digitais. Será que as pessoas entenderiam? Será que saberiam guardar o mesmo silêncio daquelas fotografias, escritas só com luz e perpetuadas em papel fosco? Será que, na falta de botões de polegares erguidos, saberiam expressar o gostar ou o não gostar?
Eu não sabia. E por não saber, guardava tudo o que via através das minhas lentes pra mim. E pra ele. Ele chegava de mansinho atrás de mim, enquanto eu mesmo admirava minha parede fotográfica – eu sem saber se gostava do que via ou se meu olhar por detrás da câmera era tão caótico quanto eu mesmo – apoiava o queixo no meu ombro, dizia baixinho “você é bom nisso, sabia?”. Eu não precisava do resto do mundo se ele sabia ler o que eu escrevia com a luz. Aquilo era felicidade, e era bom.
Bem, já não éramos mais. Estávamos protegidos pelo invólucro de plástico do filme. Escritos com luz, mas só. Que bom que pensamentos dele não eram tão perpétuos quanto foto impressa. A mente é falha. A mente engana. A mente dilui as coisas boas e más (infelizmente, estas últimas são mais resistentes ao tempo). Fui esquecendo dos detalhes. Pormenores, como sua risada, as lentes arranhadas do seu óculos ou a barba áspera e cheia de falhas. O filme e cor favoritos, as manias que mais me irritavam, a cidade que foi palco de toda a nossa dança. A cidade cortada por cinco rios. Meu coração cortado em cinco pedaços.
Bom que o tempo passa. Que nossas cidades se separam por algo maior e mais caudaloso que cinco rios. Que as memórias se perdem num mar de neurônios. E que a felicidade que eternizamos nos fotogramas estava a salvo dos olhos do mundo e dos meus. Assim era seguro. Minha vida seguiu, perfeitamente equilibrada nos trilhos mornos da normalidade. Meus olhares digitais faziam sucesso entre os amigos. Eu fazia o que gostava pra viver. Aquilo era a vida normal, e era bom.
Num domingo de nada pra fazer, me cansei da insipidez da vida. Resolvi arrumar as caixas empoeiradas que abarrotavam meu armário. Mal empilhadas, ameaçavam desmoronar à menor corrente de ar que soprasse. Pus o vinil do cantor de voz etílica para tocar. Liguei o ar-condicionado. Seria um bom dia.
Bloquinhos rabiscados com jogos-da-velha e forcas. Crachás de eventos. Certificados e horas flexíveis. Meu Deus, como eu era excepcionalmente bom em acumular meu passado. CDs piratas dados pela amiga (ela sentia uma falta danada das mixtapes e insistia em me enviar playlists em suporte físico). Uma risada ao encontrar as fotocópias de aulas tediosas. Senti saudade do meu bom humor dos últimos anos de juventude. Era tão melhor não carregar tantos poréns no coração, ô se era!
Até que achei uma caixa. Propositalmente soterrada no fundo do armário. Sem estampas nem etiquetas. Meu coração gelou quando eu a abri e encarei o tubo de plástico e sua tampa cinzenta, solitário e acusador. Quase pedi desculpas pela negligência. Bem, o tempo já havia cuidado de mim, e afinal de contas, meu espírito de fotógrafo queria saber da qualidade daquelas fotos. Meu ego às vezes me mata.
Fui até o quartinho, nos fundos do quintal, fechei as portas, acendi a lâmpada avermelhada e me pus a trabalhar. Foram três, quatro horas tão lentas. Meu coração se enegreceu quando encarei aquele sorriso. O seu sorriso. A sua barba falhada. Seu olhar que eu nunca entendi se aprovava ou escarnecia. Sua risada. Sua voz quando me dizia “você devia expor”. Os cinco rios. Aquela cidade. Tudo. Saí daquele cômodo com o coração mais escuro que ele mesmo.
Você deve estar bem, não é? Não te falta carinho ou carnaval, pelo que vejo por aí. O que nos sobra é estrada... E olha, você estava certo. Eu realmente deveria expor. Foi o que eu fiz.  As pessoas gostaram das minhas fotos. Felizmente, souberam lidar bem com a ausência do tal botão aprovador. Me fizeram ter um pouco mais de orgulho de mim mesmo e eu me lembrei de que elogios face a face são tão melhores que um bando de joinhas digitais. Meu sorriso só se apagou quando encarei a galeria vazia, altas horas da noite, preenchida de você.

Revelar aquele filme foi a pior melhor ideia que já tive. Pus em quase todo lugar a foto mais bonita que eu fiz: você olhando pra mim. Você me encarava de todos os cantos da galeria e aquilo doeu. Porque havia sido felicidade... E havia sido bom.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Inverossímil

“Nossa, você é quase um déjà vu”, ele disse às costas dela, enquanto subiam no ônibus. Ela franziu as sobrancelhas e olhou pra trás, na dúvida se era com ela que falavam, percebeu o olhar sorridente, sorriu também. “Você diz isso pra toda menina que sobe no ônibus com você?”, respondeu. “Somente para as que parecem saber o que é um déjà vu”, ele alcançou o último degrau. Ela riu. Tirou o porta-níqueis da bolsa, catou algumas moedas, encostou o corpo à roleta. “E eu sou um déjà vu do quê?”, ela com a mão estendida para o cobrador. Ele apoiou o queixo em uma das mãos (a outra tateava a pasta à procura de dinheiro), fingiu pensar. “Infância... Retorno...”, disse. Ela já avançava para os fundos do ônibus, as mãos agarrando firmemente as barras de apoio. Parou no terceiro passo, olhou para trás, sorriu. Ele sorriu de volta, o motorista acelerou, a lei da inércia o jogou contra a catraca, outra lei o puxou para o chão. Alguns passageiros riram. Ela riu. Adiantou-se para ele e estendeu a mão. “Opa!”, “Mas que mico...”, “Todo mundo cai, relaxe”, “Ninguém nesse mundo cai mais que eu”, “É uma história de amor entre você e Newton”, “Odeio física”, “Mas por que eu sou um déjà vu de retorno e infância?”. Ele se empertigou. “É o que era a minha infância. Cheiro de lavanda,  banhos demorados...”. “Então é esse tipo de déjà vu?”, ela arregalou os olhos. “Brincadeira”, caíram na gargalhada e se recompuseram ao perceber o olhar atento de alguns passageiros. Ela caminhou para os fundos. Ele não se mexeu. “Você não vai sentar?”, ela perguntou, indicando dois lugares vazios com a cabeça”. “Achei que você não ia me convidar”, “Precisei. Você é muito ousado com desconhecidas, não podia deixar aquelas senhoras” ela apontou para as passageiras “à mercê da sua companhia nefasta”. Riram, sentaram-se lado a lado. “Mas elas não parecem um déjà vu”, ele sorriu e a encarava por trás das lentes. “Bom pra elas”, “Me desculpe, você se parece muito a menina que eu espiava tomar banho no quintal da casa vizinha”, “Isso é bom?”, “Bem, ela era linda”, “Sua infância deve ter sido agitada”, “Minha fase fálica durou mais tempo que o normal”. Ela riu. “Eu sei bastante sobre sua infância, mas não sei seu nome”, “É um nome estúpido”, “Luna”, “Wagner”, “Wagner?”, ela riu. “Eu disse que era estúpido”, ele deu de ombros. “Não é estúpido. É alemão. É meu compositor favorito”. Ele ajeitou os óculos, surpreso. “Richard Wagner?”, “Esse mesmo... Por quê a surpresa?”, “Ou não entendo de música clássica, ou ninguém cita Wagner como preferido”, “Você não entende de música clássica”, “Não entendo mesmo”, “E não merece se sentar ao meu lado”, “???”, “É. Sou xiita”. Ele franziu as sobrancelhas e ela sustentou-lhe o olhar por alguns segundos até cair num riso fácil. “É brincadeira...”, ela apoiou o rosto numa das mãos e o encarou com uma espécie de sarcasmo enigmático nos olhos. Ele sentiu um formigamento nas costas. Piscou. Chovia. “E por que falávamos de Richard Wagner num ônibus se tem tantas coisas mais banais para discutirmos... Como o clima?”, ele para apontou as gotas que desciam pela janela. Ela desenhou com o dedo no vidro embaçado. “D... E... J... A...”, ela puxou os dois acentos, um sobre cada vogal, “V... U. É por isso”. “Uma familiaridade estranha”, “Mais ou menos assim”, “Tem certeza que você não é a filha da minha vizinha da infância?”, “Crianças são muito iguais”, “Tem certeza?”, “Meu ponto é o próximo”, dois olhares vacilantes. O ônibus acelerou. “E então?”, “...”, “Tchau?”, “Não é todo dia que a gente encontra um déjà vu”, “Onde é seu ponto?”, “Pode ser o próximo. Ou” ele apontou pela janela um letreiro luminoso vários metros à frente “pode ser aquele ali também”. Ela sorriu. “Infância, não é?”, e ele sorria também, “Sim”, “Retorno, não é?”, “Absolutamente”, “Um banho demorado...”, “Sim”. Ela colou os lábios ao ouvido dele e falou baixinho “Tinha um furo no muro do quintal... Às vezes, dava pra te escutar”.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Memória meio ébria

(Duas coisas que não faço há tempos: postar no Tecedor e escrever poesia. Aliás, esta é a primeira poesia que posto no blog, como fruto de um desafio textual da minha amiga Rhuana, com o tema 'álcool'. Não me orgulho muito dos meus textos em verso, mas é o que tem pra hoje. Espero que dona Rhu não se importe com a paráfrase com o título do blog dela, o Memórias Meio Sóbrias, que eu recomendo, aliás.)




Hás de perdoar o meu amor atípico?
Hás de perdoar, amor, a exaltação
Se foi teu elevado teor etílico
Que embriagou-me em pedir perdão?

Ponho na conta do meu triste vício
A ébria sede de te amar, e a ânsia
Mas se me ofereci inteira em sacrifício
Que caia a culpa em tua inoperância

Perdoarás, amor? Não peço tanto
Só que me ponhas no lugar de outrora
Perdoarás, amor? Que desencanto
Que seja eu a suspirar agora!

Perdoarás, amor, esta bandida
que te enlaçou como estivesse louca?
a jovem insana, tola, atrevida
que ensandeceu por não alcançar-te a boca?

Perdoarás, amor?



quinta-feira, 18 de abril de 2013

Requiem

(Esse texto é o resultado do desafio interblogs que fiz com mais três amigos blogueiros. É baseado no conto Strange Gifts, de Rafaela Albuquerque. A citação em itálico é do livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde). 
 

“Ela não pode estar morta”, ele pensou. “Ela não pode estar morta e ainda assim ser tão linda. Não... Ela está dormindo... Ela só está dormindo”.

Ele estendeu a mão para a aquarela. Dourado, azul, negro, verde, branco, vermelho. Encarou a tela vazia. Com as mãos trêmulas, ele começou a desenhar o contorno com lápis fino. A cada detalhe que lhe vinha à memória, seu traço ganhava mais precisão. Ele tinha que fazer aquilo, ou enlouqueceria.

Branco para a pele. A pele... Ele se lembrava de como ela parecia translúcida quando saía ao sol. Um halo a envolvia e sua imagem dançava no ar, etérea, um misto de anjo e miragem. Ele se lembrava de como o sorriso dela tinha o poder de fazer o mundo girar ao contrário e de como tudo que era vivo prendia a respiração para vê-la dormir. Ele se lembrava do cheiro e do gosto e do toque e da maciez. Ele lembrava bem demais...

Dourado, o dourado dos cabelos. As pinceladas deslizavam pela tela, criavam texturas, tomavam forma e ele lembrava. Ela nunca cortava os cabelos. Eles lhe caíam pelas costas em ondas, como um véu, ou uma coroa lhe dada por direito pela própria natureza. Ela costumava dizer que queria ser Rapunzel e o perguntava, com a voz doce, se ele a buscaria na torre mais alta. “Na torre mais alta do castelo mais alto”, ele respondia. A lembrança o fez rir.

 “Ela só está dormindo”.

Os olhos. Os olhos tinham aquele tom de verde que nenhuma tinta do mundo era capaz de reproduzir. Não quando ela conseguia imprimir no olhar a intensidade que quisesse. Escuro, quando ela tinha medo; azulado, quando ela estava curiosa; líquido, quando ela se contorcia sob ele, quase todas as noites em que estiveram juntos. Não... Os olhos dela eram impossíveis de pintar. Ele mergulhou o pincel na tinta e desenhou com cuidado o côncavo dos olhos, os cílios compridos, a sobrancelha delicada. Os olhos dela estavam fechados.

 “Mas ela está dormindo”.

O vestido. Negro. A cor que ela mais detestava. O castigo por tê-lo enlouquecido. O contorno dos seios, os mesmos seios que ele flagrou entre as mãos e os lábios de outro homem, os corpos tão enroscados que era impossível de dizer quem era quem. E diante da exclamação de mágoa, decepção e fúria que ele soltara em reação à cena que vira sem querer, ela apenas o encarou, com frieza nos olhos verdes mais lindos que ele havia visto, e o mandou embora.

Como se nada houvesse acontecido. Como se o que havia sido deles fosse nulo. Ele se lembrava do fogo que havia se irradiado do seu coração para seus braços, lembrava do impulso que o tomou como se um demônio se apropriasse das suas vontades, e lembrava de como quis feri-la, arranhá-la, machucar aquela pele alva, quase imaculada. Ele quis fazê-la sofrer e ao mesmo tempo quis tê-la de volta, com o desespero de quem se agarra à vida. Tudo o que recebeu foram aqueles olhos frios e sem amor. E a frase, que ela retirara de um livro qualquer – como se, mesmo no auge da humilhação, ele não merecesse nada que viesse genuinamente dela. Inexorável feito um final.

Há sempre algo de ridículo nas emoções de quem deixamos de amar.

Ele lembrava e pincelava o quadro com violência. Mergulhou o pincel na tinta vermelha e abriu nela feridas, fê-la sangrar o sangue que ele sentia jorrar de si mesmo. No fim, quando o relógio revelava que ele havia passado ali a noite inteira e quando os primeiros tons de lilás começavam a se misturar ao negro do céu, ele a olhou, como se encarasse a própria redenção. Era aquele o seu castigo: jazer para sempre congelada no seu traço vingativo, num estado de animação suspensa entre a vigília e a morte.

Uma lágrima pareceu escorrer do rosto dela. Ele levou a mão até os olhos e percebeu que também chorava. Pegou o quadro, ainda úmido de tinta, e beijou sua pintura na testa.

— Durma bem — sussurrou.
 
 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A quatro mãos


(texto escrito em parceria com Rhuana Caldas)




A cabeça dela não estava ali, comigo. Eu o sabia e, sem querer, nem entender as razões, sofria por isso. Não desgostava dela, na verdade, era justamente o contrário – achava-a uma graça. Viva, extremamente honesta com os próprios sentimentos, alerta, ideias simples e fortes. Por ser daquele jeito descomplicado, era fácil estar ao lado dela, fácil querer ouvi-la e querer ser ouvido por ela. Não, eu gostava dela. Mas não estava apaixonado. Não pensava nela como a mulher que era.
Feia? Muito menos. Incomum, eu diria. Exótica (ela ficava possessa quando a descreviam assim – “eufemismo pra horrorosa, não é?”). Ela era sedutora sem se esforçar para isso. Talvez o melhor sobre ela fosse o fato de ela desconhecer a força do próprio olhar, que às vezes carregava uma languidez que ela, na verdade, nem sentia.
Não sei porque nunca a olhei direito. Talvez fosse a força da amizade, que ligava meus instintos quando ela, distraída, me olhava de lado, com uma das mãos afastando o cabelo do rosto. Não sei, não sei.
Durante algum tempo, naquela noite, ela estava como sempre, falante, alegre, descontraída. Começou quando ela trocou o Martini por cerveja, depois por vodca, aguardente, tudo o que surgiu na mesa. Então eu vi o olhar mais triste que já havia visto nela, até então.

Meus dedos dormiram. Ele me observou agitá-los, um a um. E seus olhos continuaram em mim quando deixei cair o braço ao lado do corpo, vencida pelo formigamento. E mesmo quando recostei a cabeça no espaldar da cadeira e fechei os olhos, num pretenso cochilo, seu olhar elétrico não me abandonou.
Qual o seu problema? perguntei, evitando olhá-lo.
Nenhum. Só estou te olhando. Não posso?
Se você tiver algum motivo forte, talvez.
Vai controlar pra onde eu olho, agora?
Escuta – fechei os olhos num suspiro demorado, minha cabeça rodava. – Por que você não vai divertir as outras pessoas da festa? Como costuma fazer.

Na defensiva. Eu ri. Ela vestia uma blusa diáfana, de tecido fino, pela qual eu podia entrever uma das alças do sutiã caída sobre seu ombro. Resisti ao impulso de endireitá-la porque, para isso, precisaria roçar os braços no colo dela – o colo branco que estava à mostra  e não, não poderia fazê-lo, em nome da amizade e dos bons costumes. Eu gostava dela, mas não estava apaixonado.
— Porque todos parecem bem. Porque todos estão focados em uma bebida, apenas. Estão rindo e cantando, mas você não está — respondi. Ela repetiu o gesto que sempre me forçava a lembrar da tal distância segura – afastou do rosto aquela basta cabeleira cacheada. Impedi meus olhos de escorregarem para o seu colo exposto.
— O que importa eu estar bem ou não? — ela respondeu, azeda.

— O que importa eu estar bem ou não? — invadiu-me de palavras e olhares, aquilo que me irritava. Ele sabia. Mas especialmente hoje, irritava-me mais que o normal. Irritava-me seu cabelo liso que lhe cobria os olhos quando abaixava a cabeça, irritava-me quando estalava os dedos um a um, irritava-me o castanho forte de seus olhos e sua barba cuidadosamente deixada por fazer. Meus olhos pesaram ainda mais.
— Estou cansada — mal me interessou sua resposta. Deitei a cabeça em seu ombro.

Céus, ela estava tão bêbada. Deitou a cabeça em meu ombro e eu pude sentir o volume de seus cachos comprimidos contra meu pescoço. Tinham cheiro de vodca misturado a algo doce, não sei bem o quê – nasci com o olfato precário. Meu forte sempre foi a pele. A dela, gelada, contrastava com a minha, eu, quente do álcool e da fumaça dos cigarros que vinham do canto mais escuro do bar. O colo, fatalmente próximo. Desviei os olhos da curva dos seios que se pronunciou de leve quando ela envolveu o corpo com os braços.
— Você está fria.
Eu estou morrendo  falou baixinho num tom sarcástico e riu, levantando a cabeça, olhando-me de baixo. Um calafrio estranho subiu pela minha coluna até minha nuca. Ela se pôs a rir baixinho, depois se envolveu num riso descontrolado, deitando-se em meu colo.  As pessoas nos olhavam.  Abraçou-me.

Eu senti seu coração martelando dolorosamente a caixa torácica. Meu batom vermelho sujou sua camisa quando virei a cabeça, na altura de seu umbigo. E o olhar dele não me abandonou por um segundo sequer. Aquilo me divertia, ver cada um dos seus músculos retesar-se, ver a força que ele fazia para manter os olhos nos meus e não em alguma outra parte do meu corpo que estivesse exposta demais.
— Eu não te amo — sussurrei.

— Eu não te amo — e gargalhei o mais mortalmente que pude, olhando em seus olhos de café. Estava bêbada. — Você está bêbada e as pessoas estão olhando.  Venha — envolvi seus braços em meus ombros e a segurei no colo, levantando-a. Gostaria de ter rebatido, mas um eu-não-te-amo engasgou na garganta e eu o engoli com saliva, desceu feito vodca pura. Levei-a para o carro e a deitei no banco de trás.
— Vou te levar pra casa.
Fiz menção de me levantar, mas ela me envolveu pelo pescoço antes que eu pudesse pensar.
— Nós não nos amamos — ela disse devagar, com aquele jeito arrastado dos bêbados.
Era verdade, não nos amávamos. A cabeça dela não estava ali, comigo. Eu não estava apaixonado, mas por alguma razão aquele amor ausente me tinha gosto de cerveja barata. Eu não a amava porque não a via como a mulher que ela era, não me atinha às curvas de seus quadris nem aos seios que só de olhar eu tinha certeza que me encheriam a mão. Não, eu gostava dela. Mas não estava apaixonado.

Nós não nos amamos repeti, e de repente não me irritavam mais seus olhos tão próximos aos meus. Não me irritava mais o fato de que costumava pensar mais que agir. Não me irritava mais que se importasse comigo.
Eu o via debruçado sobre mim, resistindo ao meu abraço. Conseguia ver seu peito pelos primeiros botões abertos da blusa branca. Moreno. Seus cabelos tocavam-me os olhos. Beijei-o. Beijou-me de volta. Meus dedos dormiram. Ele me observou agitá-los, um a um. Seus olhos continuaram em mim quando deixei cair o braço ao lado do corpo, vencida pelo formigamento. E mesmo quando recostei a cabeça no estofado do banco do carro, fechei os olhos e adormeci, seu olhar não me abandonou.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Blues in the morning


(Dylan é o responsável pelos versos da música). 




Não eram nem cinco da manhã quando ela o avistou na estrada, sentado no meio fio, tocando uma canção em sua gaita. Ele parecia extremamente familiar, ainda que ela nunca o tivesse visto antes – quase um déjà vu, sentado contra o sol, os cabelos cacheados envoltos por um halo dourado. Parecia estar alheio ao resto do mundo (não que acontecesse muita coisa na estrada àquela hora).
Ela conhecia aquela música de algum lugar...
Havia algo de nostálgico naquela visão solitária, no modo imperturbável como ele tocava aquela gaita levemente desafinada, naquela bruma entremeada pelo claridade pálida do dia recém-nascido. Ela puxou o freio de mão e dedicou alguns minutos a olhá-lo, entre intrigada e deliciada por algo tão inusitado a acontecer fora das vistas do mundo. Ele continuava tocando, de olhos fechados, sem aparentar ter escutado o barulho do motor do velho Volkswagen.
— Quem é você? — ela se surpreendeu perguntando em voz alta.
Ele ergueu os olhos e uma sobrancelha, sem desencostar o instrumento dos lábios.
— Ninguém. — respondeu, com a voz abafada. Soltou um acorde dissonante antes de voltar à canção.
— Ei, Ninguém — ela disse enquanto saía do carro e batia a porta com descuido. — Bela música.
Ele não respondeu nada, mas parou de tocar. Mirou-a com um olhar pouco amigável, como se houvesse sido flagrado durante um delito e ainda assim a julgasse culpada ao invés dele. A hostilidade a atraiu imediatamente. Havia algo de feroz nos olhos dele que, para ela, era uma espécie de intimação a permanecer ali e descobrir mais, como se ele fosse algum objeto de investigação. Ela se sentou ao lado dele no meio fio. Ele voltou a tocar.
— Você devia me dar mais atenção, Ninguém. Você está a quilômetros da cidade mais próxima e eu não acho que o fluxo de carros por aqui vá aumentar tão cedo. — ela disse, ajeitando a franja rebelde atrás da orelha. — Talvez eu seja sua única chance de sair daqui.
Ele finalmente tirou a gaita dos lábios, num riso torto.
— E quem te disse que eu quero sair daqui? Alguém te pediu alguma coisa? Eu cheguei aqui sozinho, não foi?
Ela pôs as mãos no peito, fingindo indignação.
— Ai... Essa doeu, Ninguém.
Ele a encarou e ela notou alguns detalhes do seu rosto que o sol não havia permitido enxergar quando ela estava no carro. Os olhos de um castanho levemente dourado, a barba rala, o tom pardo da pele. Ele não chegava a ser exatamente bonito, mas emitia um magnetismo quase impossível de ignorar.
Ele a olhou impassível por alguns segundos até que se cansou da máscara desconfiada e suspirou.
— Me desculpe. Faz um bom tempo que temos sido somente eu e ela — ele indicou sua gaita com um gesto. O instrumento era de um azul escuro e profundo, adornado por detalhes dourados. Parecia extremamente antigo. — Estou desacostumado a lidar com gente.
— Entendi... E para onde você está indo, Ninguém?
— Lugar nenhum.       
Ela deu uma gargalhada.
— Ninguém vai a lugar nenhum?
Ele sorriu e voltou a tocar a estranha canção familiar. I have no one to meet and the ancient empty street's too dead for dreaming. Ela apoiou os braços no meio fio, inclinou as costas e olhou ao redor. Não havia nenhuma construção no seu raio de visão, apenas uma vegetação rasteira e algumas árvores esparsamente dispostas pelo campo. A grama ia até onde a vista alcançava, subindo e descendo em pequenas elevações. Rochas gigantescas completavam a paisagem, que era tão desolada quanto a música triste que o rapaz soprava na gaita. Não havia ninguém.
I have no one to meet.
— E você, Alguém — ele disse, quando concluiu a canção. Ela ainda não conseguia se lembrar de onde a conhecia — para onde vai?
O sorriso dela diminuiu alguns centímetros.
— A nenhum lugar...
...there is no place I’m going to.
Alguns instantes de silêncio se seguiram, até que ambos caíram numa gargalhada.
— Não seria melhor dizermos os nossos nomes? — ela perguntou, enxugando as lágrimas que o riso provocara.
— Precisamos? — ele respondeu, um semi-sorriso enigmático brincando nos lábios.
Por um momento, a pergunta pareceu a ela extremamente óbvia e até um pouco absurda. Ela abriu a boca com um “claro que sim” já equilibrado na ponta da língua, mas a insistência do olhar dourado do rapaz lhe trouxe uma clareza que ela havia experimentado poucas vezes na vida. Sorriu.
— Você pode continuar sendo Ninguém.
— E você é Alguém. Ao menos está em vantagem.
— Nomes são apenas nomes, Ninguém. Posso ser Alguém para você, mas até há poucos minutos, na estrada, eu e você poderíamos compartilhar o mesmo nome.
— Eu sou um Ninguém que vai a lugar nenhum. Você é Alguém que vai a nenhum lugar. Qual de nós dois é o pior?
Ela deu de ombros.
— Há uma história? — ele perguntou, depois de alguns segundos de silêncio tênue.
— Não. — ela respondeu, seca.
— Tem que haver. Há uma história por trás de tudo.
I'm ready to go anywhere.
— Não há muito para saber. Não tenho muitas coisas. Em lugar nenhum. Então estou constantemente deixando lugares que não me pertencem. Hoje, deixei mais um...
Um gosto muito amargo se espalhou pela ponta da língua dela.
— Sabe aquelas pessoas que colecionam posses? Eu sou exatamente o contrário...

            — Eu acho que você é uma grande covarde, Alguém. — ele disse, sem inflexão alguma na voz.
Ela ergueu as sobrancelhas. Ele havia imprimido àquela frase, cruel de tão honesta, uma casualidade tão autêntica que ela não conseguiu procurar palavras para se defender. Apenas o encarou, a boca entreaberta, numa muda espera por uma explicação.
I'm ready for to fade into my own parade.
— Isso que você chama de ‘deixar’, ‘partir’, ‘mudar’, na verdade é um grande e belo ‘fugir’. Você está fugindo. E não é de algo ou alguém. É de uma coisa que não importa onde você vá, continuará com você.
Ele era uma espécie de psicólogo, vidente, terapeuta ou algo assim?
— E o que é?
— Bem, aí eu já não sei. ­— ele sorriu e pôs a gaita nos lábios, voltando a tocar a melodia de antes.
Ela riu.
— Eu podia jurar que esse seria o momento em que você diria uma frase de efeito... Daquelas que identificam todo o problema e apontam a melhor solução...  
— Eu, não.
— Quem é você pra me lançar uma bomba dessas no colo e me deixar sem respostas?
— Eu sou Ninguém, lembra? A resposta está no vento... Ou onde você quiser. Isso não é importante agora, Alguém.
…wait only for my boot heels to be wanderin'.
Ela permaneceu ao lado dele durante toda aquela canção e mais algumas que se seguiram. O sol brilhava com um calor decidido. Ela tentou insistentemente lembrar de onde conhecia a primeira música, a que ele estivera tocando durante quase todo o dia. Era como se algo lhe soprasse que ela precisava saber o nome daquela canção... E outro algo, ainda mais forte, a impedisse de perguntar a ele.
I promise to go under it.
Até que ele se levantou, sacudiu a poeira da roupa e, com um aceno, se afastou em direção às rochas que se erguiam como testemunhas daquele nada.
— Espero que você descubra suas respostas, Alguém. Aliás, espero que você descubra as perguntas, primeiro.
— Ei! — ela chamou, quando ele era quase uma silhueta recortada contra o sol. — Onde você vai?
— A lugar nenhum, já disse...
Ela o observou se afastar, incrédula. Havia se esquecido da trivialidade do passar do tempo. Havia se esquecido de que havia vida além daquela estrada, afinal. A súbita distância dele a arremessou naquele poço de realidade... E a sensação definitivamente não era boa.
Até que ela se lembrou do nome da canção. E sorriu.