terça-feira, 17 de novembro de 2009

In nomine Pater

O ambiente era hostil – tudo ali parecia ter sido construído sob a matiz cinzenta e deprimente do caminho sem volta. Nem mesmo o padre, pleno da Luz Divina como dizia estar, conseguiu furtar-se de ouvir os ecos dos outrora usuários daquele cômodo sombrio, quando o adentrou.

Filho começou o sacerdote, sério, dirigindo-se ao único ocupante do recinto por quê? Por que destruiu uma vida desse jeito? Duas vidas? A daquela jovem... E a sua?

O homem à sua frente encarava, com os olhos muito abertos, o próprio destino.

Não havia mais vida, padre respondeu, rouco.

Vocês eram jovens. Cheios de futuro...

Eu pensava assim também.

E o que o fez mudar de ideia, filho?

O homem baixou os olhos. Os lábios finos distorceram-se num sorriso amargo.

O que o senhor faria se descobrisse que os últimos cinco anos da sua vida foram uma mentira? Que o que o mantinha vivo, que o que o alimentava, o que era o seu primeiro pensamento ao acordar e o último antes de dormir, não passava de uma farsa?

...

Eu amei aquela mulher, padre. Amei-a com desespero, empreguei nisso todas as células do meu corpo. Eu abri mão de mim por ela, por nós. Transformei um quase nada em um quase tudo. O senhor sabe o que é isso?

O padre apenas fitou o homem. Mexia desconfortavelmente no rosário num sinal evidente de que não era ali que desejava estar – ouvindo as justificativas do desespero de um assassino. Certamente havia coisas mais gratificantes na vida de um clérigo, como planejar sermões ou degustar um bom vinho na sacristia. Mas sua vida era, acima de tudo, uma renúncia – uma renúncia que fizera de livre e espontânea vontade (não mencionando, claro, a influência materna), para ser um mensageiro da vontade divina. Deus conferiu-lhe obrigações para com aquele rapaz. Resignou-se a continuar ali, como um bom confessor, esforçando-se para transparecer um mínimo de compaixão.

Filho, eu não tenho realmente como saber...

Não, não tem, padre. Ninguém tem. Eu fiz mundos e fundos por ela. Casa, comida, roupa lavada. Tentei transbordar ao máximo tudo o que eu sentia por ela. Não é uma tarefa fácil, padre, mas também não é complicada. É só sentir, sabe? Quando você sabe que é real, você pode amar com a maior facilidade do mundo. E ela... Ah, padre, ela. Linda. O senhor deve ter visto. O sorriso mais atrevido. Mãos de fada. Sabia mentir, ela, ah, sabia. ele ostentava um olhar vidrado e seco, que não condizia em nada com seu sorriso débil. Tinha uma voz de sereia que fazia qualquer absurdo parecer verdade. Se ela me dissesse que tinha visto um óvni, eu teria acreditado.

Gotas de suor brotavam de suas têmporas. Ele contemplava a parede como quem havia encontrado o fim da linha e concordava com isso; mas suas mãos, trêmulas, se retorciam, como se fosse para ele uma terrível agonia estar na própria pele.

E na cama, ah, padre, na cama... Ela era uma deusa. Simplesmente perfeita. Sabia tudo. Ceder e resistir nas horas certas. Sussurrar. Ah, os sussurros daquela maldita! a voz embargada, ele falava depressa, como se quisesse espremer todas as palavras que pudesse reunir numa mesma frase. Ela me fazia acreditar que eu era bom. Eu acreditei, padre, que era um homem bom. O SENHOR SABE O QUE É ISSO?!

O religioso sobressaltou-se. Agarrou a cruz que trazia ao pescoço com força e moveu os lábios numa ligeira prece. Desejava, agora mais do que nunca, sair daquela sala triste e monocromática e retornar à sua Igreja, onde estaria protegido dos olhos alucinados daquele homem. Sabia que deveria dizer palavras de conforto, sabia que devia fazer com que aquele jovem se arrependesse, e no entanto não podia. A austeridade do lugar fazia com que o padre se sentisse acuado numa redoma de desespero – estar ali era quase sentir a mesma agonia que o rapaz. E o rapaz tinha o direito de sentir aquilo.

Ela dizia que me amava. Que eu era o homem da sua vida, que não precisava de mais nada. Com aquela voz que me fazia acreditar em tudo. E sabe o que ela fez, padre, sabe o que ela fez?

O padre fez que não com a cabeça, já imaginando a resposta, embora não quisesse ouvi-la.

Ela me traiu! Ela me traiu, padre o homem respondeu, gargalhando alucinado e não uma, ou duas vezes, mas todos os dias em que estivemos juntos! O senhor não imagina o quanto é... Humilhante...

Chegar mais cedo em casa e flagrar uma cena... Deplorável... No chão do seu próprio quarto. E sabe o pior, padre? Sabe o pior? ele começou a rir com mais vontade ainda eles estavam numa posição que ela nunca me deixou tentar antes! Dizia ser libertina demais para ela!

Ele encarou, pela primeira vez, o sacerdote. A aridez em seus olhos fez o padre estremecer.

E foi como se algo tomasse o meu corpo. Eu não podia

atirar nela, não, padre. Ela tinha que ser destruída à proporção que eu fui destruído ao vê-la em cima de... De outro homem. Eu tinha que causar a mesma dor que ela me causou. Porque foi uma dor física. Eu senti como se meu coração fosse espremido por uma mão de ferro... Fui à cozinha, peguei uma faca... E fiz. Não sei como. O amante fugiu, o desgraçado. Mas eu não me importei com ele. Era ela que me devia contas. Era a ela que eu queria matar. Eu queria ver a luz deixar os olhos dela. E, quando terminei... Quando consegui... Pensei em me matar também. Já estava tudo terminado mesmo. Mas parei, padre... Se eu me matasse, teria que encarar aqueles olhos malditos outra vez no inferno. Eu não suportaria.

O religioso fez o sinal da cruz ao mesmo tempo que um oficial, de vestes azul-escuro, adentrou a sala.

Seu tempo acabou, padre. falou, ríspido.

Tudo bem, filho, já terminei. o padre encarou mais uma vez o assassino, num olhar que desejou ser claro – compreensão. E penitenciou-se em silêncio. Aquilo era pecado.

Quando o padre saiu, o condenado foi conduzido à maca onde receberia a dose letal de barbitúrico e tiopentato de sódio.

Eu já morri. ele disse, ao sentir o braço ser perfurado.

Minutos mais tarde, quando o padre chegou à igreja, benzeu-se, fez o sinal da cruz, acendeu uma vela à Virgem Maria e sussurrou, consigo mesmo:

Bendita a hora em que fiz voto de castidade, minha Virgem. A mulher é um ser vil. Cruzes!

domingo, 8 de novembro de 2009

Causa e efeito

Faz tempo que “nós dois” não existimos mais. Me são raros pensamentos de você ou de algo relacionado ao que fomos. “Nossas” canções voltaram a ser somente canções, que já dediquei a outros ‘alguéns’ por quem me apaixonei depois de você. Em suma, eu te esqueci.

Mas eu só te esqueci porque estou longe de você. Eu te afastei de mim pra não ter que te ver e, com isso, lembrar de tudo o que me fazia te amar.

Se eu te visse sempre, se eu permitisse que você figurasse na minha vida e na minha mente, eu iria lembrar todos os dias da sua risada que te fazia parecer uma criança e que deixava covinhas nos dois lados do seu rosto. Eu me lembraria do modo displicente com que seu cabelo anelado cai às suas costas e que sempre brigávamos quando você os cortava. Brigas de leve que acabavam em

beijos seus nos meus ombros, dizendo "seu bobo! Eles vão crescer de novo". Se eu te visse sempre, lembraria da maciez da sua pele azeitonada e de como eu gostava quando você roçava o nariz no meu pescoço. Eu me lembraria do seu olhar atrevido quando eu negava um pedido seu, e da sua insistência travessa que eliminava qualquer possibilidade de “não” das minhas ideias. Eu lembraria da sua voz rouca e grave ao acordar, que virava branda e doce quando me queria e assumia um tom quase infantil quando você não queria pensar. Eu me lembraria de como suas sobrancelhas se arqueiam num ângulo estranho quando você pensa demais. Eu me lembraria de como virávamos as noites conversando sobre coisas cada vez mais aleatórias e de como ríamos, surpresos, de nossas ideias tão loucas quanto compatíveis. Nessas horas tínhamos a certeza de

que era sorte demais termos encontrado um ao outro.

Eu me lembraria de tudo isso, me lembraria do porquê de te amar tanto e voltaria a te amar. Porque amor não acaba, só adormece – se esconde nalgum vão remoto do coração esperando a hora de arrebatar tudo para si outra vez. E outros amores acham lugar pra surgir.

Com você longe de mim, eu te esqueci. Com você longe de mim, eu não te amo. Mas só com você longe. Então é melhor que você fique onde está.

domingo, 1 de novembro de 2009

Tao

(Referências bastante claras ao fim do texto... :))


Sol.

Lua.

Dia.

Noite.

Luz.

Escuridão.

Casa.

Rua.

Vício.

Virtude.

Medo.

Coragem.

Felicidade.

Tristeza.

Monocromático.

Multicolorido.

Chão.

Teto.

Cigarra.

...?

Vamos, cigarra.

Formiga.

Bom!

Mau.

Não, não era pra você dizer o antônimo agora. Foi um elogio. Mas tudo bem, você está indo muito bem...

Obrigado. Continuamos?

Bem.

Mal. Com L.

Sul.

Norte.

Azul.

Amarelo.

Você é um oponente e tanto!

Obrigado.

Por nada... Veneno.

Cura.

Luxúria.

Castidade.

Amor.

...

O que foi? Este é um contrário óbvio, filho. Ódio.

Nem tanto, pai...

Como assim?

Eu gostava de uma menina lá da escola, sabe? A Aninha. Ela sabia disso e, para me provocar, beijou meu melhor amigo. Foi o primeiro beijo dela, pai. O primeiro beijo que ela sabia que eu queria dar nela. E agora eu a odeio.

Então. O ódio é o contrário do amor.

Não é, pai... Eu gosto dela. Apesar de odiá-la. Ela ainda tem espaço nos meus pensamentos e no meu coração, ainda que seja numa lista negra, sabe? Eu procurei no dicionário e ódio quer dizer ‘raiva inveterada e absoluta’, e é o que eu sinto, mas eu só sinto isso por ela porque eu a quero pra mim, comigo, e não posso tê-la porque ela é cruel.

E qual é o contrário de amor?

Então, pai... Eu saberei que não a amo mais quando passar por ela como se ela fosse parte da decoração. Um pedaço do ambiente. Quando ela for invisível como uma ameba. Quando eu não me importar se ela estiver mal, e ao mesmo tempo não me afetar se ela estiver bem. O dicionário diz que isso se chama indiferença. Procurei por alguns minutos até encontrar.

Você descobriu isso lendo apenas o dicionário?

Não, pai, eu descobri amando... “O dicionário nunca amou”.