segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A quatro mãos


(texto escrito em parceria com Rhuana Caldas)




A cabeça dela não estava ali, comigo. Eu o sabia e, sem querer, nem entender as razões, sofria por isso. Não desgostava dela, na verdade, era justamente o contrário – achava-a uma graça. Viva, extremamente honesta com os próprios sentimentos, alerta, ideias simples e fortes. Por ser daquele jeito descomplicado, era fácil estar ao lado dela, fácil querer ouvi-la e querer ser ouvido por ela. Não, eu gostava dela. Mas não estava apaixonado. Não pensava nela como a mulher que era.
Feia? Muito menos. Incomum, eu diria. Exótica (ela ficava possessa quando a descreviam assim – “eufemismo pra horrorosa, não é?”). Ela era sedutora sem se esforçar para isso. Talvez o melhor sobre ela fosse o fato de ela desconhecer a força do próprio olhar, que às vezes carregava uma languidez que ela, na verdade, nem sentia.
Não sei porque nunca a olhei direito. Talvez fosse a força da amizade, que ligava meus instintos quando ela, distraída, me olhava de lado, com uma das mãos afastando o cabelo do rosto. Não sei, não sei.
Durante algum tempo, naquela noite, ela estava como sempre, falante, alegre, descontraída. Começou quando ela trocou o Martini por cerveja, depois por vodca, aguardente, tudo o que surgiu na mesa. Então eu vi o olhar mais triste que já havia visto nela, até então.

Meus dedos dormiram. Ele me observou agitá-los, um a um. E seus olhos continuaram em mim quando deixei cair o braço ao lado do corpo, vencida pelo formigamento. E mesmo quando recostei a cabeça no espaldar da cadeira e fechei os olhos, num pretenso cochilo, seu olhar elétrico não me abandonou.
Qual o seu problema? perguntei, evitando olhá-lo.
Nenhum. Só estou te olhando. Não posso?
Se você tiver algum motivo forte, talvez.
Vai controlar pra onde eu olho, agora?
Escuta – fechei os olhos num suspiro demorado, minha cabeça rodava. – Por que você não vai divertir as outras pessoas da festa? Como costuma fazer.

Na defensiva. Eu ri. Ela vestia uma blusa diáfana, de tecido fino, pela qual eu podia entrever uma das alças do sutiã caída sobre seu ombro. Resisti ao impulso de endireitá-la porque, para isso, precisaria roçar os braços no colo dela – o colo branco que estava à mostra  e não, não poderia fazê-lo, em nome da amizade e dos bons costumes. Eu gostava dela, mas não estava apaixonado.
— Porque todos parecem bem. Porque todos estão focados em uma bebida, apenas. Estão rindo e cantando, mas você não está — respondi. Ela repetiu o gesto que sempre me forçava a lembrar da tal distância segura – afastou do rosto aquela basta cabeleira cacheada. Impedi meus olhos de escorregarem para o seu colo exposto.
— O que importa eu estar bem ou não? — ela respondeu, azeda.

— O que importa eu estar bem ou não? — invadiu-me de palavras e olhares, aquilo que me irritava. Ele sabia. Mas especialmente hoje, irritava-me mais que o normal. Irritava-me seu cabelo liso que lhe cobria os olhos quando abaixava a cabeça, irritava-me quando estalava os dedos um a um, irritava-me o castanho forte de seus olhos e sua barba cuidadosamente deixada por fazer. Meus olhos pesaram ainda mais.
— Estou cansada — mal me interessou sua resposta. Deitei a cabeça em seu ombro.

Céus, ela estava tão bêbada. Deitou a cabeça em meu ombro e eu pude sentir o volume de seus cachos comprimidos contra meu pescoço. Tinham cheiro de vodca misturado a algo doce, não sei bem o quê – nasci com o olfato precário. Meu forte sempre foi a pele. A dela, gelada, contrastava com a minha, eu, quente do álcool e da fumaça dos cigarros que vinham do canto mais escuro do bar. O colo, fatalmente próximo. Desviei os olhos da curva dos seios que se pronunciou de leve quando ela envolveu o corpo com os braços.
— Você está fria.
Eu estou morrendo  falou baixinho num tom sarcástico e riu, levantando a cabeça, olhando-me de baixo. Um calafrio estranho subiu pela minha coluna até minha nuca. Ela se pôs a rir baixinho, depois se envolveu num riso descontrolado, deitando-se em meu colo.  As pessoas nos olhavam.  Abraçou-me.

Eu senti seu coração martelando dolorosamente a caixa torácica. Meu batom vermelho sujou sua camisa quando virei a cabeça, na altura de seu umbigo. E o olhar dele não me abandonou por um segundo sequer. Aquilo me divertia, ver cada um dos seus músculos retesar-se, ver a força que ele fazia para manter os olhos nos meus e não em alguma outra parte do meu corpo que estivesse exposta demais.
— Eu não te amo — sussurrei.

— Eu não te amo — e gargalhei o mais mortalmente que pude, olhando em seus olhos de café. Estava bêbada. — Você está bêbada e as pessoas estão olhando.  Venha — envolvi seus braços em meus ombros e a segurei no colo, levantando-a. Gostaria de ter rebatido, mas um eu-não-te-amo engasgou na garganta e eu o engoli com saliva, desceu feito vodca pura. Levei-a para o carro e a deitei no banco de trás.
— Vou te levar pra casa.
Fiz menção de me levantar, mas ela me envolveu pelo pescoço antes que eu pudesse pensar.
— Nós não nos amamos — ela disse devagar, com aquele jeito arrastado dos bêbados.
Era verdade, não nos amávamos. A cabeça dela não estava ali, comigo. Eu não estava apaixonado, mas por alguma razão aquele amor ausente me tinha gosto de cerveja barata. Eu não a amava porque não a via como a mulher que ela era, não me atinha às curvas de seus quadris nem aos seios que só de olhar eu tinha certeza que me encheriam a mão. Não, eu gostava dela. Mas não estava apaixonado.

Nós não nos amamos repeti, e de repente não me irritavam mais seus olhos tão próximos aos meus. Não me irritava mais o fato de que costumava pensar mais que agir. Não me irritava mais que se importasse comigo.
Eu o via debruçado sobre mim, resistindo ao meu abraço. Conseguia ver seu peito pelos primeiros botões abertos da blusa branca. Moreno. Seus cabelos tocavam-me os olhos. Beijei-o. Beijou-me de volta. Meus dedos dormiram. Ele me observou agitá-los, um a um. Seus olhos continuaram em mim quando deixei cair o braço ao lado do corpo, vencida pelo formigamento. E mesmo quando recostei a cabeça no estofado do banco do carro, fechei os olhos e adormeci, seu olhar não me abandonou.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Blues in the morning


(Dylan é o responsável pelos versos da música). 




Não eram nem cinco da manhã quando ela o avistou na estrada, sentado no meio fio, tocando uma canção em sua gaita. Ele parecia extremamente familiar, ainda que ela nunca o tivesse visto antes – quase um déjà vu, sentado contra o sol, os cabelos cacheados envoltos por um halo dourado. Parecia estar alheio ao resto do mundo (não que acontecesse muita coisa na estrada àquela hora).
Ela conhecia aquela música de algum lugar...
Havia algo de nostálgico naquela visão solitária, no modo imperturbável como ele tocava aquela gaita levemente desafinada, naquela bruma entremeada pelo claridade pálida do dia recém-nascido. Ela puxou o freio de mão e dedicou alguns minutos a olhá-lo, entre intrigada e deliciada por algo tão inusitado a acontecer fora das vistas do mundo. Ele continuava tocando, de olhos fechados, sem aparentar ter escutado o barulho do motor do velho Volkswagen.
— Quem é você? — ela se surpreendeu perguntando em voz alta.
Ele ergueu os olhos e uma sobrancelha, sem desencostar o instrumento dos lábios.
— Ninguém. — respondeu, com a voz abafada. Soltou um acorde dissonante antes de voltar à canção.
— Ei, Ninguém — ela disse enquanto saía do carro e batia a porta com descuido. — Bela música.
Ele não respondeu nada, mas parou de tocar. Mirou-a com um olhar pouco amigável, como se houvesse sido flagrado durante um delito e ainda assim a julgasse culpada ao invés dele. A hostilidade a atraiu imediatamente. Havia algo de feroz nos olhos dele que, para ela, era uma espécie de intimação a permanecer ali e descobrir mais, como se ele fosse algum objeto de investigação. Ela se sentou ao lado dele no meio fio. Ele voltou a tocar.
— Você devia me dar mais atenção, Ninguém. Você está a quilômetros da cidade mais próxima e eu não acho que o fluxo de carros por aqui vá aumentar tão cedo. — ela disse, ajeitando a franja rebelde atrás da orelha. — Talvez eu seja sua única chance de sair daqui.
Ele finalmente tirou a gaita dos lábios, num riso torto.
— E quem te disse que eu quero sair daqui? Alguém te pediu alguma coisa? Eu cheguei aqui sozinho, não foi?
Ela pôs as mãos no peito, fingindo indignação.
— Ai... Essa doeu, Ninguém.
Ele a encarou e ela notou alguns detalhes do seu rosto que o sol não havia permitido enxergar quando ela estava no carro. Os olhos de um castanho levemente dourado, a barba rala, o tom pardo da pele. Ele não chegava a ser exatamente bonito, mas emitia um magnetismo quase impossível de ignorar.
Ele a olhou impassível por alguns segundos até que se cansou da máscara desconfiada e suspirou.
— Me desculpe. Faz um bom tempo que temos sido somente eu e ela — ele indicou sua gaita com um gesto. O instrumento era de um azul escuro e profundo, adornado por detalhes dourados. Parecia extremamente antigo. — Estou desacostumado a lidar com gente.
— Entendi... E para onde você está indo, Ninguém?
— Lugar nenhum.       
Ela deu uma gargalhada.
— Ninguém vai a lugar nenhum?
Ele sorriu e voltou a tocar a estranha canção familiar. I have no one to meet and the ancient empty street's too dead for dreaming. Ela apoiou os braços no meio fio, inclinou as costas e olhou ao redor. Não havia nenhuma construção no seu raio de visão, apenas uma vegetação rasteira e algumas árvores esparsamente dispostas pelo campo. A grama ia até onde a vista alcançava, subindo e descendo em pequenas elevações. Rochas gigantescas completavam a paisagem, que era tão desolada quanto a música triste que o rapaz soprava na gaita. Não havia ninguém.
I have no one to meet.
— E você, Alguém — ele disse, quando concluiu a canção. Ela ainda não conseguia se lembrar de onde a conhecia — para onde vai?
O sorriso dela diminuiu alguns centímetros.
— A nenhum lugar...
...there is no place I’m going to.
Alguns instantes de silêncio se seguiram, até que ambos caíram numa gargalhada.
— Não seria melhor dizermos os nossos nomes? — ela perguntou, enxugando as lágrimas que o riso provocara.
— Precisamos? — ele respondeu, um semi-sorriso enigmático brincando nos lábios.
Por um momento, a pergunta pareceu a ela extremamente óbvia e até um pouco absurda. Ela abriu a boca com um “claro que sim” já equilibrado na ponta da língua, mas a insistência do olhar dourado do rapaz lhe trouxe uma clareza que ela havia experimentado poucas vezes na vida. Sorriu.
— Você pode continuar sendo Ninguém.
— E você é Alguém. Ao menos está em vantagem.
— Nomes são apenas nomes, Ninguém. Posso ser Alguém para você, mas até há poucos minutos, na estrada, eu e você poderíamos compartilhar o mesmo nome.
— Eu sou um Ninguém que vai a lugar nenhum. Você é Alguém que vai a nenhum lugar. Qual de nós dois é o pior?
Ela deu de ombros.
— Há uma história? — ele perguntou, depois de alguns segundos de silêncio tênue.
— Não. — ela respondeu, seca.
— Tem que haver. Há uma história por trás de tudo.
I'm ready to go anywhere.
— Não há muito para saber. Não tenho muitas coisas. Em lugar nenhum. Então estou constantemente deixando lugares que não me pertencem. Hoje, deixei mais um...
Um gosto muito amargo se espalhou pela ponta da língua dela.
— Sabe aquelas pessoas que colecionam posses? Eu sou exatamente o contrário...

            — Eu acho que você é uma grande covarde, Alguém. — ele disse, sem inflexão alguma na voz.
Ela ergueu as sobrancelhas. Ele havia imprimido àquela frase, cruel de tão honesta, uma casualidade tão autêntica que ela não conseguiu procurar palavras para se defender. Apenas o encarou, a boca entreaberta, numa muda espera por uma explicação.
I'm ready for to fade into my own parade.
— Isso que você chama de ‘deixar’, ‘partir’, ‘mudar’, na verdade é um grande e belo ‘fugir’. Você está fugindo. E não é de algo ou alguém. É de uma coisa que não importa onde você vá, continuará com você.
Ele era uma espécie de psicólogo, vidente, terapeuta ou algo assim?
— E o que é?
— Bem, aí eu já não sei. ­— ele sorriu e pôs a gaita nos lábios, voltando a tocar a melodia de antes.
Ela riu.
— Eu podia jurar que esse seria o momento em que você diria uma frase de efeito... Daquelas que identificam todo o problema e apontam a melhor solução...  
— Eu, não.
— Quem é você pra me lançar uma bomba dessas no colo e me deixar sem respostas?
— Eu sou Ninguém, lembra? A resposta está no vento... Ou onde você quiser. Isso não é importante agora, Alguém.
…wait only for my boot heels to be wanderin'.
Ela permaneceu ao lado dele durante toda aquela canção e mais algumas que se seguiram. O sol brilhava com um calor decidido. Ela tentou insistentemente lembrar de onde conhecia a primeira música, a que ele estivera tocando durante quase todo o dia. Era como se algo lhe soprasse que ela precisava saber o nome daquela canção... E outro algo, ainda mais forte, a impedisse de perguntar a ele.
I promise to go under it.
Até que ele se levantou, sacudiu a poeira da roupa e, com um aceno, se afastou em direção às rochas que se erguiam como testemunhas daquele nada.
— Espero que você descubra suas respostas, Alguém. Aliás, espero que você descubra as perguntas, primeiro.
— Ei! — ela chamou, quando ele era quase uma silhueta recortada contra o sol. — Onde você vai?
— A lugar nenhum, já disse...
Ela o observou se afastar, incrédula. Havia se esquecido da trivialidade do passar do tempo. Havia se esquecido de que havia vida além daquela estrada, afinal. A súbita distância dele a arremessou naquele poço de realidade... E a sensação definitivamente não era boa.
Até que ela se lembrou do nome da canção. E sorriu.