terça-feira, 20 de agosto de 2013

Inverossímil

“Nossa, você é quase um déjà vu”, ele disse às costas dela, enquanto subiam no ônibus. Ela franziu as sobrancelhas e olhou pra trás, na dúvida se era com ela que falavam, percebeu o olhar sorridente, sorriu também. “Você diz isso pra toda menina que sobe no ônibus com você?”, respondeu. “Somente para as que parecem saber o que é um déjà vu”, ele alcançou o último degrau. Ela riu. Tirou o porta-níqueis da bolsa, catou algumas moedas, encostou o corpo à roleta. “E eu sou um déjà vu do quê?”, ela com a mão estendida para o cobrador. Ele apoiou o queixo em uma das mãos (a outra tateava a pasta à procura de dinheiro), fingiu pensar. “Infância... Retorno...”, disse. Ela já avançava para os fundos do ônibus, as mãos agarrando firmemente as barras de apoio. Parou no terceiro passo, olhou para trás, sorriu. Ele sorriu de volta, o motorista acelerou, a lei da inércia o jogou contra a catraca, outra lei o puxou para o chão. Alguns passageiros riram. Ela riu. Adiantou-se para ele e estendeu a mão. “Opa!”, “Mas que mico...”, “Todo mundo cai, relaxe”, “Ninguém nesse mundo cai mais que eu”, “É uma história de amor entre você e Newton”, “Odeio física”, “Mas por que eu sou um déjà vu de retorno e infância?”. Ele se empertigou. “É o que era a minha infância. Cheiro de lavanda,  banhos demorados...”. “Então é esse tipo de déjà vu?”, ela arregalou os olhos. “Brincadeira”, caíram na gargalhada e se recompuseram ao perceber o olhar atento de alguns passageiros. Ela caminhou para os fundos. Ele não se mexeu. “Você não vai sentar?”, ela perguntou, indicando dois lugares vazios com a cabeça”. “Achei que você não ia me convidar”, “Precisei. Você é muito ousado com desconhecidas, não podia deixar aquelas senhoras” ela apontou para as passageiras “à mercê da sua companhia nefasta”. Riram, sentaram-se lado a lado. “Mas elas não parecem um déjà vu”, ele sorriu e a encarava por trás das lentes. “Bom pra elas”, “Me desculpe, você se parece muito a menina que eu espiava tomar banho no quintal da casa vizinha”, “Isso é bom?”, “Bem, ela era linda”, “Sua infância deve ter sido agitada”, “Minha fase fálica durou mais tempo que o normal”. Ela riu. “Eu sei bastante sobre sua infância, mas não sei seu nome”, “É um nome estúpido”, “Luna”, “Wagner”, “Wagner?”, ela riu. “Eu disse que era estúpido”, ele deu de ombros. “Não é estúpido. É alemão. É meu compositor favorito”. Ele ajeitou os óculos, surpreso. “Richard Wagner?”, “Esse mesmo... Por quê a surpresa?”, “Ou não entendo de música clássica, ou ninguém cita Wagner como preferido”, “Você não entende de música clássica”, “Não entendo mesmo”, “E não merece se sentar ao meu lado”, “???”, “É. Sou xiita”. Ele franziu as sobrancelhas e ela sustentou-lhe o olhar por alguns segundos até cair num riso fácil. “É brincadeira...”, ela apoiou o rosto numa das mãos e o encarou com uma espécie de sarcasmo enigmático nos olhos. Ele sentiu um formigamento nas costas. Piscou. Chovia. “E por que falávamos de Richard Wagner num ônibus se tem tantas coisas mais banais para discutirmos... Como o clima?”, ele para apontou as gotas que desciam pela janela. Ela desenhou com o dedo no vidro embaçado. “D... E... J... A...”, ela puxou os dois acentos, um sobre cada vogal, “V... U. É por isso”. “Uma familiaridade estranha”, “Mais ou menos assim”, “Tem certeza que você não é a filha da minha vizinha da infância?”, “Crianças são muito iguais”, “Tem certeza?”, “Meu ponto é o próximo”, dois olhares vacilantes. O ônibus acelerou. “E então?”, “...”, “Tchau?”, “Não é todo dia que a gente encontra um déjà vu”, “Onde é seu ponto?”, “Pode ser o próximo. Ou” ele apontou pela janela um letreiro luminoso vários metros à frente “pode ser aquele ali também”. Ela sorriu. “Infância, não é?”, e ele sorria também, “Sim”, “Retorno, não é?”, “Absolutamente”, “Um banho demorado...”, “Sim”. Ela colou os lábios ao ouvido dele e falou baixinho “Tinha um furo no muro do quintal... Às vezes, dava pra te escutar”.