terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Um quase

A gente não se olha nos olhos, você reparou? Parece que ficam no ar todas as acusações implícitas do nosso quase-amor – esse atrevido, que agora dorme tranquilo no vão dos anos que se passaram.
Já faz tanto tempo, não é?
Parece até covardia falar em saudade. De tudo o que foi eu só queria de volta minha poesia, porque parece que você a levou toda embora e esgotou toda a minha sorte em histórias de boa loucura. Sabe? Como se numa tacada só eu tivesse me permitido toda inconsequência que uma vida admite? É coisa injusta, mas dos meus dedos não sai mais nada que me agrade desde que nos demos por encerrados.
Você foi meu melhor beijo, meus maiores suspiros, minha melhor roupa, minha mais louca canção. Te dediquei tantos poemas, tantas palavras. Me pergunto se você sabe. Nunca tive coragem de te contar e agora, tenho menos ainda – agora que nossos caminhos não se cruzam mais.
Nunca nos pertencemos, mas existe essa parte de mim que não tem outro dono que não você. Gosto de pensar que existe um você que só eu tenho, só eu vi, só eu sei. Também gosto de pensar que você guarda consigo um pouco do meu eu que foi seu, com o mesmo cuidado que dedico a tudo que foi nosso.
Nossas memórias de quase-amor. Você é quem jura ter chegado perto de me amar; eu não tenho certeza se fiquei aquém da linha de chegada.
Eu só sei que eu queria de volta aquela fluidez de palavras brotando da saliva. Dos meus olhos. A malícia quase inocente, aquela ansiedade que me levava embora, embora. Aquele não saber das coisas.  Aquele eu que só você tem. Essas coisas que ninguém mais pode me dar.
Quero por querer, porque sei que nada disso posso reaver. Existem coisas que ficam presas nas dobras das primeiras vezes. Só o que nos sobrou é o suspiro que parece saudade, embora dizer saudade seja quase um desafio ao presente... E nossos olhos, que não conseguem se encontrar.

Talvez seja melhor assim. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Pendência

Você tem uma pendência? Um assunto mal resolvido, não tão importante, mas que cutuca o fundo do seu cérebro de tempos em tempos, te lembrando de que ainda existe e que ei, não pretende parar de te atormentar até que você tire a questão a limpo de vez? Incômodo e inofensivo, feito um cisco no olho?
Eu tenho uma. E olha, não sei por quê, não sei qual é o meu problema. O salário que cai na conta ao fim de cada mês paga todas as despesas e paga ainda mais algumas cervejas. A tal solidão não me atormenta mais, uma moça bonita sempre atende as minhas ligações e diz sim aos meus convites para o cinema, para o chope de depois e a transa da madrugada. Acho que as pessoas chamam isso de namoro.
E isso acalma um homem, dizem. Isso é o que o faz recolher o time, fechar a porta, apagar as luzes e se dar por satisfeito, muito satisfeito, no nível de suspiros risonhos toda noite, antes de dormir. Você pode dizer que eu sou um homem quieto.
Mas há ela.
Ela remanesce, como um eco do não feito no passado. Não é que ela esteja diferente, embora me pareça diferente, a cada rara vez que a gente se encontra. Mas ela remanesce. Ali, na minha frente, é quase um grito do passado, me jogando na face as decisões que não tomei.
Como nos velhos tempos, ela ainda sorri quando me vê e ri das minhas piadas, não sei se por compaixão ou por seu senso de humor pouco exigente. Tudo está igual. E ao mesmo tempo, tudo está melhor, maior. É como se aquela figura me esfregasse na cara o que eu perdi. Você entende isso? Ela fica cada vez mais atraente pra massacrar em mim o fato de que a deixei escapar.
E não é que eu a tenha deixado escapar, pelo amor de Deus! Aconteceu algo, foi bom, eu não sabia como encerrar, não queria encerrar, mas também estava pela metade e ela decidiu por mim. Sumiu por uns tempos, voltou quando as coisas estavam calmas. Eu, definitivamente, estava calmo... Mas perto dela, nem um pouco.
Pode me chamar de porco. De canalha. Ela mesma o faz, quando pergunto “é coisa da minha cabeça ou você está ainda mais gostosa?”. Me devolve aquele sorriso meio surpreso e rebate “Depende, de que cabeça estamos falando?”. E ri. Aquele sorriso de não-vai-acontecer-de-novo. Ou de tome-vergonha-na-cara. Ou de quem não me leva a sério. E não deveria, olha de quem estamos falando.
Mas ela remanesce. O sorriso é o mesmo, a simpatia de sempre, as piadas ruins ainda por aí... Mas não sei o que essa menina tem que me deixa fora de mim. E eu desconfio que nunca de fato saberei o que é viver sem essa tal pendência. A não ser que as coincidências nos coloquem no lugar certo e na hora certa.
Ela remanesce, incômoda feito um espinho do pé. Uma pedrinha no meu sapato. Bagunçando a tal paz de que eu me julgava um afortunado possuidor.

E há quem me aconselhe que deixe tudo isso de lado e viva minha vida. É... tem gente que não sabe que a vingança não é o único prato que se come frio. 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

In Mortis Examine



Morreu n’algum ponto entre a nona e a décima curva da estrada deserta. Levantou-se e mal olhou o cadáver lacerado – pouco importava, afinal. Mal retinha os detalhes perimortem na memória. Lágrima ou outra, oco no peito, abismo nos pés. Palavras duras, voz de veludo. O fim do mundo contido em poucas sentenças. Tempestade vermelha e negra entre crime e castigo. O de sempre.
Morta, deixou o corpo, limpou a sujeira, caminhou. Seria a terceira ou quarta de suas mortes? As lembranças não se sustinham. Eram os tais primeiros minutos. Quanto mais até o rigor mortis? Quanto mais até que os últimos resquícios de vida se dissipassem numa sinapse incompleta?
Você é tão fraca, o cadáver se aproximou.
Deve estar doendo, respondeu indiferente.
Não mais do que doeu das primeiras vezes, rebateu conformado. Então?
Então...?
O que vai ser? Luto? Revolta? Reclusão?
Passei da idade, e cerrou os lábios.
Talvez fosse a quinta de suas mortes, não estava certa. As convicções caíam pela estrada, aos pares, junto a tudo que era concreto. O cadáver a seguia de perto e ela sabia que assim seria. Testemunharia a própria dor como alma fora do corpo. Anestesiada e dormente. Equilibrada mal e porcamente na linha tênue entre culpa e culpado.
O que sabia, o que tinha por certo é que entre mortos e feridos, salvavam-se os fortes e ela nunca fora capaz de preencher aquela estatística. Seu destino era sempre morte, fosse numa beira de estrada, numa casa em ruínas, num banco traseiro, numa vala comum. Causa mortis: excesso.
Mais que fraca, sentia-se exausta. Só queria que a abiose encerrasse todas as amarras que a prendiam à vida. Respiração. Impulsos. Circulação. Sonhos. Vontades. Pesar. Quando se morre mais de uma vez, tudo é questão de hábito.
Mas eis que caminhou indistintamente por uma hora ou um minuto, talvez menos, ou talvez mais, e voltou ao mesmo lugar em que estava antes e sempre estivera. Morta, entre a nona e a décima curva. A quarta ou quinta de suas mortes. Eviscerada na beira da estrada.
Que assim seja, e deitou-se no asfalto.
Assim será, o cadáver a acompanhou.