segunda-feira, 23 de março de 2009

U.T.I.

Ela sentou-se defronte ao sentimento moribundo que se recusava a ir-se embora. Estampava nos olhos um ar grave, quase solene, mas sob sua pele não se escondia nada além de cansaço. E aquele, ela sabia, talvez fosse um ultimato.
Ele andara minguando. Ela percebera isso quando a antiga vontade quase urgente de estar junto foi sucumbindo a uma exaustão triste e vampira.
— Vai logo — ela disse, na voz diminuída pela fadiga de uma espera sem frutos. — Vai.
Ele, desesperado, preso à vida apenas pelos tubos de oxigênio do hábito (ao menos, ela tentava convencer-se disso – ele ainda estava ali porque ela acostumara-se a senti-lo), bem que tentou arguir.
— Não.. Por favor. Me deixa ficar. Espera mais um pouco. Agora, eu sei que...
Um ricto contorceu os lábios dela num sorriso irônico.
— Esperar? Com que audácia você me pede pra esperar? Aliás, esperar o quê? Nada?
Os últimos meses haviam sido espera. Espera que só existia porque ele, o agonizante à sua frente, outorgava sua presença. Inúmeras vezes ela tentou esquivar-se. Inúmeras vezes ele retornou ao lugar que julgava, por direito, seu. Compreensível até, a insistência daquele estranho afeto. Que lugar um sentimento gostaria mais que um peito aberto, confuso e vulnerável? Aconchegou-se ali, sem grande resistência dela, e ali ficou. Feito um posseiro, seguro de si, prendeu suas garras, ainda que sutis, numa artéria qualquer.
Veio a dúvida. Vieram as rupturas. Ela mandou o motivo embora, mas o sentimento, ah, este ali permaneceu. Não por muito tempo, ela esperava. Entreteu-se em conceber maneiras de assassiná-lo. Que nome teria uma assassina de sentimento? Uma pathoscida? Etimologia às favas. Ela o mataria.
Mas, infeliz, não morreu. Por mais venenos que ela oferecesse. Por mais motivos que ela encontrasse. Ela mesma não conseguia resistir ao olhar carregado de futuro com que o bendito gostava de brindá-la. Fraca, fraca! E o que ela ganhava com aquilo? Noites em claro regadas a lágrimas.
Os minutos viraram horas, as horas viraram dias, os dias sedimentaram-se em meses. Enfim, como dizia o velho jargão popular, o cansaço vence. E ela estava esgotada. As marcas escuras em torno dos olhos eram a prova irrefutável de sua derrota. O cansaço bateu-lhe a porta, viu o atual inquilino de seu coração, ensaiou seu melhor sorriso de esperança e entrou. Juntos, ela e o cansaço, observaram o enfermo.
— Não. Seu tempo já está quase no fim. O bem que você não me faz já está me cobrando os honorários. — categórica. Quase cruel. Olhos cerrados para não enxergar o outro e seus olhos de promessa.
Ele já dava indícios de desistência. O mutismo de sua culpa já era, para ela, um sinal de vitória. Ele morreria. De inanição. De morte morrida. Ou matada, pelo punhado de sentimentos, atraentes e, sobretudo, inéditos, que estavam à porta, chamando a moça, incitando-a a conhecê-los.
— E você vai me deixar aqui sozinho? — ele indagou, a voz entrecortada por soluços e desamparo.
A resposta veio gélida. Com cada sílaba dançando na ponta da língua da moça, como se soletrá-las lhe causasse imenso prazer.
— Não. Vou ficar aqui. Vou assistir você morrer. Vou ficar até ter certeza de que você não respira mais.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Antropologia para quem não vai ser antropólogo.

Eu não queria saber a respeito dos empiricistas ou racionalistas, eu não queria saber quem eram Durkheim, Morgan, Franz Boas ou o papa, eu só queria ver o tempo passar depressa. Para mim, estes nomes estrangeiros não passam de frases em papéis ou, como diria o professor, tubos digestivos. Talvez nem isso... Não consigo imaginar esses nomes, tão cheios de consoantes e difíceis de pronunciar, digerindo alguma coisa. Mas isso não importa tanto, eu acho. Pessoas com nomes de substância de remédio perdem totalmente sua importância quando eu olho no relógio e vejo que ainda falta uma hora para esses Malinowskis acabarem. Gente que nunca vi (e que nunca verei, já que morreram) e que me prende numa classe onde a voz do professor tem o mesmo efeito que um comprimido de Lexotan. Ai, vida... É nessas horas que eu tenho aquela idéia que todo mundo acha besta: uma máquina do tempo! Vou construir uma com o que tenho aqui: lápis, caderno, caneta, óculos, roupas, sapatos... E minha imaginação. Ah, esse seria um bom lugar para pesquisas de campo, melhor que as ilhas Trobriand. Minha imaginação me leva onde quero... Pesquisa de campo boas seria fora dessa sala, isso sim. Aprenderia muito mais andando por esta floresta que dá pra ver da janela do que ouvindo esse professor, que nem se levanta, falar. Daria tudo pra estar lá fora, comendo uma trufa e jogando palavras fora. Aliás... Daria tudo pra mandar essa relíquia à minha frente, que chamo de professor, pras ilhas Trobriand. E que os nativos façam bom proveito! Minha cabeça dói. E eu começo a pensar seriamente em sair correndo pela porta para ver uma estrutura de verdade e não um "estruturalismo falado".
Com que petulância ele fala sobre mães! Isso não é da jurisdição dele. Deus, Deus, meus pensamentos estão cada vez mais subversivos. São os sistemas primitivos de classificação, estão me ensandecendo. Ele adora um incesto. Ele deve ter tido um caso com a mãe ou com a irmã. OU COM A SOGRA! É, ele ama, em todos os sentidos, a sogra dele. E, mudando de assunto, não acaba mais não, é? Meia hora me parece uma eternidade quando tenho como som de fundo a voz monocórdia do tédio. O pior é quando ele dá pausas. Um abismo dentro de outro ainda maior. O pior é que eu me iludo quando ele fala "na próxima aula...". Eu tenho a certeza de que ele vai dizer "tchau, I have to go now". Mas ele recomeça o blablabla. Ô, vida!

(Por Ludmila e Eduardo, dois calouros profundamente interessados na aula de Antropologia. Acreditem ou não, é um diálogo...)

terça-feira, 17 de março de 2009

A palavra é fascista.

Aula normal. Na verdade, normal é um adjetivo muito injusto pra definir a aula de Teoria da Comunicação. Eu poderia começar com um "aula singular" (incomum demais), "aula maravilhosa" (clichê demais!), "aula esclarecedora" (ainda não o era quando o fato ocorreu de fato). Okey. Evitando mais delongas, isentarei "aula" de adjetivos. Aula. Ponto.
Perdida num devaneio, entre céu, terra e éter, lá estava eu, na primeira banca da primeira fila, olhar fixo nalgum ponto vago. A aula, repito, estava ótima e não existiam razões aparentes que justificassem minha distração. Acontece que um déficit de atenção sempre me perseguiu e, mesmo nas coisas mais interessantes da vida, costumo ser acometida por essas crises temporárias de ausência (não, eu não sou epilética). Minha culpa, minha máxima culpa.
Enfim, lá estava eu, dividida entre fantasia-realidade, num estado momentâneo de transe, enquanto fixava os apontamentos no caderno - referências a Peirce, Saussure, Freud, semiótica, sexo, prisão de ventre e outras "mirabolices" (com a licença da digníssima Língua Portuguesa).
Eis que fui abruptamente chamada de volta à realidade - ah, bandida! - pelo que julguei uma frase absurda, proferida pelo professor. Ele, que falava numa voz plácida, que eu adorava ouvir, citou, como era de praxe, a máxima de um de seus teóricos. Acontece que eu não estava preparada pra ela...
- A palavra é fascista.
Fascista?! Como assim? A palavra me era um mundo de possibilidades, me tornava senhora de quantos destinos quisesse. A palavra! Não havia nada que me fascinasse mais que o poder que ela atribui a quem sabe usá-la. Eu sonhava em, um dia, incluir-me nesse rol.
- Hã?
Perdoem-me, foi o único som que a minha incredulidade e surpresa me permitiram emitir. A palavra, fascista? Ela, que me era a libertação? Que, onde quer que estivesse grafada, alçava vôo e deixava que a minha imaginação fluísse? O professor pousou o olhar em mim.
- Sim. Estamos presos à limitação da palavra. À limitação do seu significado. A palavra é fascista porque nos obriga a falar.
A explicação mergulhou-me novamente nas divagações. Só que, agora, eu refletia acerca daquela frase, que mostrou-se absurda, a princípio, e agora mostrava-se absurdamente certa. Sim, de fato, a palavra é totalitária! E nós, que lidamos com ela, somos os seus prisioneiros. Impossível viver sem ela num mundo que são aglomerados de idéias convergentes ou divergentes, sei lá. Mais ainda, é impossível viver com ela. A palavra é irrevogável. Criadora, criatura, destruidora.
Quantas e quantas vezes eu já quis dizer coisas lindas que soavam terrivelmente estúpidas quando "palavreadas"? Quem nunca achou um "eu te amo" bobo e fora de contexto? Há um sentimento grandioso dentro de nós. É a coisa mais pura, terna, intensa, blablabla, que já sentimos, e quando expressamos... Ah. Que comum. Como diriam Nancy e Frank Sinatra (ou, numa versão mais "atual", Nicole Kidman e Robbie Williams)... "And then I go I spoil it all by saying something stupid like I love you..."
Eu, hein. A razão está com o JH. "Acho que o dicionário nunca amou..."

segunda-feira, 9 de março de 2009

Mãe, beijei a esmo.

Poucos garotos na vida, afora seus amores juvenis e unilaterais. A moça, em seu vestido vermelho e não tão mulher quanto seu corpo a fazia parecer, não esperava nada de extraordinário naquela festa. Conversar aos berros com a irmã, por conta da música alta. Bebericar os refrigerantes, ela não era dada a aventuras etílicas. Acrescentar alguns gramas ao que ela chamava de "tecido adiposo maldito" comendo salgadinhos, coisas de festa.
A música era horrível. Ao menos, aos seus ouvidos. Os acordes distorcidos pelas enormes caixas de som a atordoavam, e ela ponderava consigo mesma "quem, em sã consciência, gosta de ouvir isso?". Até que, enfim, cedeu aos apelos da irmã, e, nuns passos tímidos que eram mais uma tentativa de imitar o gingado insinuante das moças ao redor, foi à pista de dança. "Não fui feita pra isso", ela constatou, ao sentir os pés, metidos em saltos enormes, incomodarem e doerem.
Então, quando a derrota já era dada por certa e ela começava a dirigir-se para alguma cadeira para atender à súplica dos pés inchados, um rapaz tocou sua mão. Ela ergueu as sobrancelhas para ele, num claro e mudo "sim?", que ele replicou convidando-a para dançar.
- Eu não sei dançar!
- Claro que sabe.
Dois passos pra lá, três pra cá, e ela, atordoada, notou que conhecia o perfume que emanava do rapaz. "Diacho de cheiro que me persegue!". Trocaram, em poucas palavras, as informações triviais e obrigatórias a todo início de diálogo. Nome, idade, ocupação. Ela, os olhos baixos, pensava numa maneira de escapar dali, escapar do estranho que até era simpático, porém usava aquele perfume que a perturbava imensamente. Há meses e meses aquele cheiro lhe corroía o juízo. E agora, após tantas fugas, ela estava ali, as narinas encostadas em ombros que tinham o mesmo odor da sua insônia!
- Eu disse que você sabia dançar, menina.
Ela riu seu riso discreto em resposta, o sorriso de quem não sabe o que responder. E o sorriso dele afrouxou. Seus olhos se estreitaram. Ela conhecia aqueles sintomas. E antes que pudesse decodificá-los de todo, o rapaz beijou-a. O primeiro beijo a esmo de toda a sua vida. Coisa de festa.

sábado, 7 de março de 2009

Eu te amo, mas não posso fazer-te feliz...

Ele enunciou aquela frase como quem diz "bom dia" ou fala sobre as estampas novas do papel de parede da sala. O tom casual a fez pensar que fosse brincadeira, alguma demonstração de afeto disfarçada em falsa modéstia. Típico dele, ela riu-se.
- Não seja bobo. Claro que...
- Falo sério. Não posso fazer-te feliz.
- E por quê?
A voz ligeiramente trêmula traiu a calma que ela tentava ostentar ante o silêncio cabisbaixo do companheiro (ou ex companheiro, pelo que as palavras dele sentenciavam). Tentou recordar os conselhos do terapeuta holístico. Tudo vai ficar bem, tudo vai ficar bem, tudo vai... Não! Se nada estava bem, dificilmente as coisas melhorariam! Ela sabia. Ela podia sentir. A felicidade dos últimos meses era tão intensa lhe parecia imerecida, fugaz, como se, num belo dia, fosse abrir a janela e sumir numa nuvem diáfana. Maldita intuição! A moça nunca desejou tanto não estar sempre certa.
"Eu te amo, mas não posso fazer-te feliz". Onde aquela mente insana fora buscar uma frase dessas? Era incoerente, controversa, cruel, absurda, e outros adjetivos e impropérios que ela poderia desatinar por horas a fio. Mas a urgência da questão não permitia perder tempo. Raciocinar era um luxo que só lhe era concedido por ser irrefreável. Como ele ousava?
- Como você pode saber se nem ao menos tentou? Se nem ao menos tentamos?
- Eu sinto. Eu só... Sinto.
Bandido. Ele a havia feito deixar seu lugar, munida apenas de incerteza, esperança, dúvida e amor, que ela julgava correspondido. Apenas passagem de ida e muitos sonhos na bagagem. E, mal o sol havia se posto duas vezes, ela já encontrava razões para voltar. E aqueles dois dias de carinho incontido? E as promessas de reencontro que ele fizera quando a deixara? E os pormenores que eu desconheço, mas sei não serem desimportantes ao coração da moça? Ah, a moça. Ela retornou ao lar. Retornou aos braços de seus amores incondicionais apesar de nem sempre presentes. Relatou a eles o seu pesar, molhou colos e braços com as suas lágrimas sentidas. Inspirou num coração a vontade de escrever, de relatar aquele desengano, deixando aos leitores o benefício da dúvida. Verídica ou não, eis a história do dia.