domingo, 20 de fevereiro de 2011

Aval


Os braços abertos, ela tentava equilibrar-se no muro baixo, rente à areia do mar. O vento era forte e os cabelos chicoteavam-lhe o rosto. Ele, mais alto, acompanhava-a, um pouco atrás, para ampará-la caso ela trocasse os passos – coisa que ele estava absolutamente certo de que aconteceria logo.

— Você não confia em mim mesmo — ela disse, já perto do fim do muro.

— Claro que não! — ele respondeu para as costas dela, um maldoso sorriso nos lábios — Com esse cerebelo desregulado que você tem, como eu poderia confiar?

Ela virou-se para olhá-lo, numa expressão cômica de tão indignada e, ao fazê-lo, desequilibrou-se e caiu na areia.

— Heh! Eu disse! — ele gargalhou, estendendo a mão para ela. — Que confiança você quer merecer, desse jeito?

Ela deu de ombros e, apoiando-se nele, içou-se para cima do muro novamente. Mostrou-lhe a língua antes de prosseguir em seu intento, bambeando ligeiramente.

— Que eterna criança que você é... — ele cruzou os braços, ainda atrás dela.

— No momento em que você quiser a adulta ranzinza, é só pedir — ela respondeu, sem olhar pra trás, uma nota de irritação na voz.

— Ei... Você ficou chateada?

— ...

— Ei, ei, eu não estou reclamando nem nada assim.

Ela virou-se para ele mais uma vez, contrariada.

— Ah, não? — ela replicou, entredentes, com um ar de pueril exasperação. Que ele achava bonitinho, por sinal.

— Claro que não! Se você fosse uma adulta ranzinza, com certeza não estaríamos aqui hoje. — respondeu o rapaz, rindo, estendendo a mão mais uma vez.

— Não, não. Não quero sua mão agora. Vamos fazer assim: você se afasta. Não fica atrás de mim. Vamos ver se eu não consigo cruzar esse muro de ponta a ponta?

Diante da obstinação dela, ele riu mais uma vez.

— Okay... Você é quem manda, moça corajosa.

O rapaz afastou-se, indo recostar-se a uma árvore próxima. Ela respirou fundo e abriu os braços. Ele a viu atravessar o muro uma, duas, três vezes, e riu-se da expressão compenetrada e obstinada da moça. Tão boba ela, tentando provar que podia!

— Viu? — ela gritou, sorridente, já na quarta travessia. — Sequer vacilei. Quem é que não merece confiança agora?

— Você, besta. Por perder seu tempo me provando uma bobagem dessas — ele respondeu, os olhos claros faiscando de malícia.

— Seu f...!!!

Ele gargalhou. Ela sorriu, contrariada, e correu até ele.

— A sua cara nessas horas é impagável... Você devia ver, é sério — ele disse, tentando desviar-se dos tapas da moça.

— Você não presta, criatura. Não presta, de verdade.

— Eu digo que sou mau... Você que não acredita em mim.

— Na-não. — ela balançou o indicador, marota. — Você finge que é. Porque uma pessoa má não acudiria uma moça pseudo-embriagada numa noite de réveillon... Não cederia a camisa branca para ela sentar no chão... Não seguraria as mãos geladas dela, enquanto ela se refaz de uma única taça de champanhe...

— Que espécie de homem você acha que eu sou, pra recusar oferecer apoio a uma donzela em perigo? — ele respondeu, emburrado. — Fora que eu não fui o único. Você ganhou massagem nos pés e uma fatia de bolo de chocolate, e não fui eu o gentleman que fez isso.

— É, eu sei. Vocês todos foram ótimos naquela noite, nunca me esqueci... Mas... Um homem mau também não ficaria vermelho ao ouvir isso! — ela riu, apertando-lhe as bochechas.

— Oras...

— Eu sou a razão da sua insônia. Isso é uma prova definitiva de que você não é mau.

— Mocinha — ele cutucou-a na cintura — eu não tenho culpa se você não tem um pingo de juízo e oferece seu coração aos quatro ventos. Quase sempre, cai nas mãos erradas... E quando não cai, fica aí, torturada por amores não correspondidos. Então, o que me resta? Cuidar de você. Pra evitar que você faça besteira. Ou te consolar, quando a besteira acontece.

Ela o abraçou, radiante, e afastou-se com um sorriso de ponta a ponta.

— Você tem feito isso bem. Muuuuuuuito bem.

— Heh...

— E pra que você não deixe de fazer... — ela correu para o muro, mais uma vez — vou te dar cada vez mais razões pra cuidar de mim!

— Ah, minha úlcera...


(A você, que sofre de úlcera há dois anos por causa de uma mocinha serelepe...)


terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Irrevogável

— Se eu me perder de você, talvez me ache de novo.

— Por que você condiciona uma coisa à outra?

— Por que foi você que me tirou de mim. Mas não estou responsabilizando você, nem nada do tipo.

— Imagina se estivesse...

— É sério. Eu não te privaria da culpa se ela existisse. Mas não existe. Não em você.

— E ainda assim, não consigo me sentir aliviado.

— Você fez o que tinha que fazer...

— Fazer você se perder de si? Queria ter tido uma missão mais nobre...

Ela gargalhou. E ele nunca havia ouvido um riso tão triste e alegre ao mesmo tempo.

— Não poderia ser mais nobre, meu bem! Eu me perdi, é verdade, mas tive o absurdo nas mãos... Não há nada que me seja mais precioso e importante. É isso o que eu devo a você. Foi essa a sua missão. — ela respondeu, terna, tomando-lhe o rosto nas mãos.

— E agora a gente tem que se perder um do outro? — ele aconchegou-se a ela.

— É. Precisamos voltar pras nossas vidas.

— E isso não é parte dela?

— É sim, a melhor parte. A parte que despreza a realidade, as convicções, as medidas, a razão... Você me deu o melhor de mim, eu, que já andava poluída de tanta razão nas minhas veias.

— Mas então... Por que não estender isso?

Ela riu, mais uma vez, e enlaçou-o como se quisesse retê-lo em si para sempre.

— Porque é assim que eu quero me lembrar de nós... Inteiros. Felizes. Antes que alguma bobagem venha erodir o que somos. Prefiro congelar nós dois assim.

Ele suspirou e assentiu. Levou o polegar aos olhos dela e, delicadamente, limpou duas lágrimas que brotavam. Beijou-a na testa, nas maçãs do rosto, na ponta do nariz. Ela estremeceu.

— Eu só não quero que o mundo nos estrague... — ela balbuciou, a voz embargada.

— Sssshhhh.

E ele colou os lábios nos dela.



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Mútuo

Era um par de horas, mas poderia ser uma vida. Não era amor, mas poderia ser melhor, mais que isso, até: uma conseqüência. Sem punições à vista, sem nada que ofuscasse a importância daquele agora.

Eles estavam frente a frente. Entre goles discretos, monossílabos e meios sorrisos, algo muito maior se insinuava, cuja medida exata eles não tinham – não precisavam ter, na verdade – mas podiam sentir e reproduzir em cada gesto, mínimo que fosse.

Conheciam-se, mas fingiram-se estranhos um ao outro. Achavam melhor redescobrirem-se devagar, feito crianças ignorantes da mesquinhez adulta de viver em guerra contra o tempo. Não havia necessidade de pressa, já que nenhum dos dois tinha a mínima intenção de fugir. Por que não a rendição, lenta e completa, se ali havia tanto a saber? O tempo, junto a tudo o mais que não fosse eles dois, fora relegado ao patamar das coisas desimportantes.

Então”, ele disse, com os olhos.

Então?”, ela respondeu, com o olhar.

...?”.

Eu temo, e você sabe”.

Você teme, e eu sei... E temo também”.

Tememos”.

Mas quero”.

Queremos, então”.

E então...?”.

Por que havia tantos senões diante daquele querer de duas vias? Era apenas questão de reinventar o mundo que impossibilitava aquele recém-nascido ‘nós dois’. Ele já parecia, em seu mutismo, refeito. Ela, no entanto, ainda desconhecia a bravura de despir-se dos anos. E muitos foram os minutos de silêncio, torcer de mãos e olhares atravessados. Por muito tempo, ela preferiu não notar o clima que se desenhava nítido ao seu redor. Tentou pôr a seu favor o desaviso – por desconhecer que caminho tomar – até que ele calou num beijo aquela boca muda de porquês.

Foi quando o renovar de ideias não pareceu das empreitadas mais difíceis.