— Senta. E escuta.
Ele acomodou-se de qualquer jeito na poltrona. Um tanto desconfortável, é verdade, mas esse detalhe não tinha a menor importância. Não naquele momento, onde nem o recanto mais aconchegante do mundo seria capaz de lhe curar a tensão. Ainda mais porque a causadora estava ali à frente. Vestindo de pedido o que, com certeza, era uma intimação. Aqueles olhos metálicos não enganavam ninguém.
— E então? — ele arriscou.
Ela caminhou até a janela. Espalmou as mãos no parapeito, sorveu o ar frio daquele fim de tarde. Deixou que o vento lhe acariciasse os cabelos, antes de virar-se e enunciar, num tom de voz indefinido:
— Você mentiu pra mim.
Ele ergueu as sobrancelhas. O mesmo discurso, novamente? Já não haviam posto tudo em pratos limpos?
— Olha, eu...
— Shhh. Ouça.
Tamborilando os dedos no parapeito da janela, ela olhava as próprias unhas, muito provavelmente sem enxergá-las.
— Você mentiu pra mim quando disse que ia passar.
— Hã?
Ela apenas fitou-o, impassivelmente, calor algum emanando de seu corpo ou de seus olhos. Fria. Ele não demorou muito a encontrar uma conclusão. Então ela... Não o esquecera! Soubera de seu recente envolvimento com outra e o queria de volta! O enlaço inesperado de seu ego forçou-lhe um sorriso nos lábios, mas ele logo o reprimiu diante do olhar cáustico de sua inquisidora. Sério novamente, ele aprumou-se, agora convicto de sua importância na vida da moça à sua frente. Não fosse seu ego tão precipitado, ele teria percebido que havia um paradoxo entre o olhar duro e as confissões que ela supostamente acabara de fazer. Mais que isso, havia uma diferença entre o ar gélido da atual e o amor acalorado da de outrora. Mas, naquele momento, o ego do rapaz fechava-lhe uma venda nos olhos.
— Olha, eu sei que o que vivemos foi bonito, mas... — começou.
— Você fez questão de enfeiar o final, não foi? — ela enunciou, sorrindo ironicamente.
— Não foi... Intencional.
— Traição? Seguida de mentira?
— Todos erram, e...
— Repetidas vezes?
Ele começava a irar-se. Já não pagara caro pelo que havia feito? Já não abrira mão daquela hábil massageadora de ego que ele tanto relutou em deixar? Gostava dela... Gostava ainda mais de si mesmo. Não era hora de pôr tudo sobre pratos limpos. Não novamente. Detestava vê-la esmiuçando todos os pecados que ele havia cometido. Amontoando-os diante dele, apenas para deixá-lo sem ação. Não tinha culpa se ela ainda o amava!
— Não posso fazer nada quanto a isso. Já pedi desculpas. Não posso voltar pra você.
— Voltar pra mim?! — ela arregalou os olhos, numa maliciosa surpresa. — Você acha que...? Acha que depois de tudo eu seria estúpida...
Ele apenas estreitou os olhos.
— Quando eu disse que não passou — ela falava devagar, imprimindo a cada palavra um tom docemente ameaçador — quis dizer... Lembra-se do que eu disse da última vez que conversamos? Que a cada vez que te via, me vinham lágrimas e eu sentia uma vontade doida de... Matar você? Você me olhou com um sorriso de quem não tem desculpas a dizer. E disse, simplesmente, "vai passar". Em parte você tinha razão. Não me vêm lágrimas aos olhos. Mas ainda sinto vontade de matar você, meu caro.
A confissão não o preocuparia tanto se os olhos dela não estivessem perigosamente vidrados, como ele nunca vira antes. Seu ego transformou o enlaço numa corda no pescoço.
— Chato, isso. Você mexer comigo dessa forma, ainda, depois de tanto tempo. Me causar tantos... Impulsos. — continuou ela, no mesmo tom adorável e horripilante.
E ela abriu uma gaveta, numa cômoda escura ao lado da janela. E dela tirou um revólver. E sorriu.
— Sábia a voz que disse "ceda a teus impulsos", meu caro.
terça-feira, 26 de maio de 2009
segunda-feira, 18 de maio de 2009
Súplica.
Todos os dias, acordo com os cabelos grudados na bochecha e com os olhos ainda nos sonhos. Todos os dias, desde que você reivindicou para si um lugar na minha já confusa cabeça. E, sempre que acordo, suspiro, a Realidade me encara, o Sonho me devolve um olhar de "eu faço o que posso" e vamos à luta...
Sai da minha cabeça, vai. Esse lugar não te pertence. Por mim, não pertenceria mais a ninguém. A Dor, companheira minha por muito, muito tempo, já foi embora, mas esqueceu comigo o Medo. E ele gosta de mim. Bastante, ao que parece. Sobretudo quando eu afugento qualquer esperança que ache alento no meu coração. O Medo ri de mim e murmura "você é ótima, sabia?".
Eu tenho medo de que você me plante a semente da dúvida, cultive-a e suma antes que ela se faça uma certeza. Porque me vi, dia desses, com um sorriso bobo estampado no rosto por uma razão tão fútil que passei minutos a fio num monólogo de auto-censura. Porque extraio felicidade das mínimas causas, sim. Porque em vista disso tudo sei qual é a minha sentença, e quero evitá-la. Porque eu sou eu demais e isso me cansa...
Sai da minha cabeça, vai. Esse lugar não te pertence. Por mim, não pertenceria mais a ninguém. A Dor, companheira minha por muito, muito tempo, já foi embora, mas esqueceu comigo o Medo. E ele gosta de mim. Bastante, ao que parece. Sobretudo quando eu afugento qualquer esperança que ache alento no meu coração. O Medo ri de mim e murmura "você é ótima, sabia?".
Eu tenho medo de que você me plante a semente da dúvida, cultive-a e suma antes que ela se faça uma certeza. Porque me vi, dia desses, com um sorriso bobo estampado no rosto por uma razão tão fútil que passei minutos a fio num monólogo de auto-censura. Porque extraio felicidade das mínimas causas, sim. Porque em vista disso tudo sei qual é a minha sentença, e quero evitá-la. Porque eu sou eu demais e isso me cansa...
quarta-feira, 13 de maio de 2009
Despejo.
(Post-réplica - ou continuação - do post chamado Boas-vindas, da mesma autora, e inspirado na canção "A Traição", de JH Azevedo).
Dia à morte. Céu tingindo-se de noite e estrelas. O cenário era o mesmo de todos os dias, e quando abri a porta, lá estava ela - a indesejada. Mas quem sorria era eu. Um sorriso cheio de cor.
— Olá. — enunciei, o sadismo alto e claro na minha voz.
Ela não sorria. Pelo contrário, estampava nos olhos o maior ódio que lhe era possível, o maior ódio de que alguém era capaz. Com razão. Apesar da minha natureza passiva e resignada, havia momentos em que eu simplesmente me cansava de toda aquela amarga autocompaixão que eu era especialista em sentir e decidia passar uma borracha nos garranchos que eu chamava, genericamente, de passado. Ela sabia disso. Sabia reconhecer o ânimo renovado em meu rosto. O que não era difícil, visto que na presença dela, eu não estava muito aquém da doença, constantemente com uma expressão de quem sente um fedor bem embaixo do nariz.
— Quem é? — ela perguntou. Na certa referia-se à sua substituta, à mulher que faria de mim um homem menos solitário, como sempre acontecia. Só que dessa vez as coisas eram diferentes.
— Não é. — respondi, o sorriso ainda largo em meu rosto. — Dessa vez, não é ninguém, minha cara. Dessa vez você vai embora porque eu estou cansado, apenas.
— Não minta pra mim!
— Você é a pessoa a quem eu sou mais sincero nesse mundo. E não porque eu queira. — eu já não sorria. — Simplesmente não consigo esconder de você as verdades que até de mim mesmo tento omitir.
Ela levantou-se. Andava em círculos, num gesto explícito de nervosismo. Era, de fato, bela. Quando eu não tinha que me consumir por estar fadado àquela lúgubre companhia, podia enxergar sua graça, sutil, quase cruel. Controverso que ela não me parecesse assim tão bonita quando vinha pra ficar.
— Não teime em me deixar! — ela gritou. — Quem é que te acolhe quando não te resta nada?
— A Esperança.
— Não me venha falar de Esperança. Você, que é pessimista por excelência. Há muito tempo está divorciado dessa... Dessa... Dessa mentira!
Suspirei. Fato que passei algum tempo separado de Esperança. Ela me era sinônimo de dor-de-cabeça, às vezes. No entanto, noites atrás, ela procurou-me, dizendo não suportar mais minha insônia e pedindo-me uma chance. Não fosse meu desespero por minha atual (e temporária) cônjuge, não sei se a teria ouvido. Talvez tivesse. Ela também me rendia bons frutos, preciso ser justo.
— Mentira ou não, estar com ela me era mais prazeroso que estar com você. Entenda, Solidão. Dessa vez não é ninguém. Dessa vez sou eu mesmo. — encerrei.
Ela partiu, inconformada. Na pressa, deixou entreaberta a porta. Vi um olho tímido me observando pela fresta e sorri.
— Entre —convidei.
A dama que entrou era a mais bela de todas as minhas ocasionais companheiras. Eu esperava, sinceramente, que ela ficasse muito, muito tempo comigo. Talvez ficasse. Era mais fácil quando a união era tão fraternal. Seu nome? Auto-estima.
Dia à morte. Céu tingindo-se de noite e estrelas. O cenário era o mesmo de todos os dias, e quando abri a porta, lá estava ela - a indesejada. Mas quem sorria era eu. Um sorriso cheio de cor.
— Olá. — enunciei, o sadismo alto e claro na minha voz.
Ela não sorria. Pelo contrário, estampava nos olhos o maior ódio que lhe era possível, o maior ódio de que alguém era capaz. Com razão. Apesar da minha natureza passiva e resignada, havia momentos em que eu simplesmente me cansava de toda aquela amarga autocompaixão que eu era especialista em sentir e decidia passar uma borracha nos garranchos que eu chamava, genericamente, de passado. Ela sabia disso. Sabia reconhecer o ânimo renovado em meu rosto. O que não era difícil, visto que na presença dela, eu não estava muito aquém da doença, constantemente com uma expressão de quem sente um fedor bem embaixo do nariz.
— Quem é? — ela perguntou. Na certa referia-se à sua substituta, à mulher que faria de mim um homem menos solitário, como sempre acontecia. Só que dessa vez as coisas eram diferentes.
— Não é. — respondi, o sorriso ainda largo em meu rosto. — Dessa vez, não é ninguém, minha cara. Dessa vez você vai embora porque eu estou cansado, apenas.
— Não minta pra mim!
— Você é a pessoa a quem eu sou mais sincero nesse mundo. E não porque eu queira. — eu já não sorria. — Simplesmente não consigo esconder de você as verdades que até de mim mesmo tento omitir.
Ela levantou-se. Andava em círculos, num gesto explícito de nervosismo. Era, de fato, bela. Quando eu não tinha que me consumir por estar fadado àquela lúgubre companhia, podia enxergar sua graça, sutil, quase cruel. Controverso que ela não me parecesse assim tão bonita quando vinha pra ficar.
— Não teime em me deixar! — ela gritou. — Quem é que te acolhe quando não te resta nada?
— A Esperança.
— Não me venha falar de Esperança. Você, que é pessimista por excelência. Há muito tempo está divorciado dessa... Dessa... Dessa mentira!
Suspirei. Fato que passei algum tempo separado de Esperança. Ela me era sinônimo de dor-de-cabeça, às vezes. No entanto, noites atrás, ela procurou-me, dizendo não suportar mais minha insônia e pedindo-me uma chance. Não fosse meu desespero por minha atual (e temporária) cônjuge, não sei se a teria ouvido. Talvez tivesse. Ela também me rendia bons frutos, preciso ser justo.
— Mentira ou não, estar com ela me era mais prazeroso que estar com você. Entenda, Solidão. Dessa vez não é ninguém. Dessa vez sou eu mesmo. — encerrei.
Ela partiu, inconformada. Na pressa, deixou entreaberta a porta. Vi um olho tímido me observando pela fresta e sorri.
— Entre —convidei.
A dama que entrou era a mais bela de todas as minhas ocasionais companheiras. Eu esperava, sinceramente, que ela ficasse muito, muito tempo comigo. Talvez ficasse. Era mais fácil quando a união era tão fraternal. Seu nome? Auto-estima.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
Fugaz.
Ela fechou a porta do quarto com estrondo, largou a mochila num canto, olhou-se no espelho. Seu reflexo devolveu o olhar mais exultante que os últimos meses haviam visto. Não conseguiu reprimir o grito que a alegria a forçou a empurrar pra fora da garganta.
- Yeaaaaaaaaaaaaaaaaah, baby!!
Os vizinhos provavelmente imaginaram prêmios na loteria, promoção no emprego, algo do gênero. Se conhecessem bem a garota do 203, saberiam que ela extraía felicidade do mínimo. Muita felicidade. Era o caso.
- Ele me sorriu, ele me sorriu.
E, embora esse mínimo pareça estúpido, estampou nos lábios da moça um sorriso sem prazo de vencimento.
terça-feira, 5 de maio de 2009
O preço que se paga.
Ah, infortúnio. Não poderiam ter-me construído uma morada mais insalubre. Aqui é escuro, úmido, apertado. Mal posso me mexer. Mas é o preço que se paga.
É quente, aqui. Apesar disso, minhas mãos estão insuportavelmente frias e rígidas. Como tudo em mim, afinal. Meu corpo não parece reagir a esse ambiente. Sinto-me adormecida, por completo, como se uma anestesia geral me houvesse sido aplicada.
Sequer me brota algum sentimento. Meu coração não pulsa, não bombeia para o meu ser nenhuma espécie de emoção. Já não sei o que é raiva, ódio, amor, compaixão, nada, nada. Parece que me esqueci de como se sente. Só sei o que é indiferença. Nesta, sou perita.
Esqueci-me também de como se respira. Minhas narinas estão imóveis. Meu peito não arfa. Já estou acostumada à escuridão, embora esteja aqui há poucas horas. E, mesmo que não estivesse, teria uma eternidade para isso.
Estou condenada à inércia e ao breu. Estou ainda mais sujeita à ação do tempo. Estou vinte e três gramas mais leve, embora não aparente. Estou fadada ao esquecimento. E condenada à eternidade. É o preço que se paga por estar a sete palmos da superfície, encimada por um "aqui jaz" de mármore. É o preço que se paga por morrer.
É quente, aqui. Apesar disso, minhas mãos estão insuportavelmente frias e rígidas. Como tudo em mim, afinal. Meu corpo não parece reagir a esse ambiente. Sinto-me adormecida, por completo, como se uma anestesia geral me houvesse sido aplicada.
Sequer me brota algum sentimento. Meu coração não pulsa, não bombeia para o meu ser nenhuma espécie de emoção. Já não sei o que é raiva, ódio, amor, compaixão, nada, nada. Parece que me esqueci de como se sente. Só sei o que é indiferença. Nesta, sou perita.
Esqueci-me também de como se respira. Minhas narinas estão imóveis. Meu peito não arfa. Já estou acostumada à escuridão, embora esteja aqui há poucas horas. E, mesmo que não estivesse, teria uma eternidade para isso.
Estou condenada à inércia e ao breu. Estou ainda mais sujeita à ação do tempo. Estou vinte e três gramas mais leve, embora não aparente. Estou fadada ao esquecimento. E condenada à eternidade. É o preço que se paga por estar a sete palmos da superfície, encimada por um "aqui jaz" de mármore. É o preço que se paga por morrer.
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