sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Blues in the morning


(Dylan é o responsável pelos versos da música). 




Não eram nem cinco da manhã quando ela o avistou na estrada, sentado no meio fio, tocando uma canção em sua gaita. Ele parecia extremamente familiar, ainda que ela nunca o tivesse visto antes – quase um déjà vu, sentado contra o sol, os cabelos cacheados envoltos por um halo dourado. Parecia estar alheio ao resto do mundo (não que acontecesse muita coisa na estrada àquela hora).
Ela conhecia aquela música de algum lugar...
Havia algo de nostálgico naquela visão solitária, no modo imperturbável como ele tocava aquela gaita levemente desafinada, naquela bruma entremeada pelo claridade pálida do dia recém-nascido. Ela puxou o freio de mão e dedicou alguns minutos a olhá-lo, entre intrigada e deliciada por algo tão inusitado a acontecer fora das vistas do mundo. Ele continuava tocando, de olhos fechados, sem aparentar ter escutado o barulho do motor do velho Volkswagen.
— Quem é você? — ela se surpreendeu perguntando em voz alta.
Ele ergueu os olhos e uma sobrancelha, sem desencostar o instrumento dos lábios.
— Ninguém. — respondeu, com a voz abafada. Soltou um acorde dissonante antes de voltar à canção.
— Ei, Ninguém — ela disse enquanto saía do carro e batia a porta com descuido. — Bela música.
Ele não respondeu nada, mas parou de tocar. Mirou-a com um olhar pouco amigável, como se houvesse sido flagrado durante um delito e ainda assim a julgasse culpada ao invés dele. A hostilidade a atraiu imediatamente. Havia algo de feroz nos olhos dele que, para ela, era uma espécie de intimação a permanecer ali e descobrir mais, como se ele fosse algum objeto de investigação. Ela se sentou ao lado dele no meio fio. Ele voltou a tocar.
— Você devia me dar mais atenção, Ninguém. Você está a quilômetros da cidade mais próxima e eu não acho que o fluxo de carros por aqui vá aumentar tão cedo. — ela disse, ajeitando a franja rebelde atrás da orelha. — Talvez eu seja sua única chance de sair daqui.
Ele finalmente tirou a gaita dos lábios, num riso torto.
— E quem te disse que eu quero sair daqui? Alguém te pediu alguma coisa? Eu cheguei aqui sozinho, não foi?
Ela pôs as mãos no peito, fingindo indignação.
— Ai... Essa doeu, Ninguém.
Ele a encarou e ela notou alguns detalhes do seu rosto que o sol não havia permitido enxergar quando ela estava no carro. Os olhos de um castanho levemente dourado, a barba rala, o tom pardo da pele. Ele não chegava a ser exatamente bonito, mas emitia um magnetismo quase impossível de ignorar.
Ele a olhou impassível por alguns segundos até que se cansou da máscara desconfiada e suspirou.
— Me desculpe. Faz um bom tempo que temos sido somente eu e ela — ele indicou sua gaita com um gesto. O instrumento era de um azul escuro e profundo, adornado por detalhes dourados. Parecia extremamente antigo. — Estou desacostumado a lidar com gente.
— Entendi... E para onde você está indo, Ninguém?
— Lugar nenhum.       
Ela deu uma gargalhada.
— Ninguém vai a lugar nenhum?
Ele sorriu e voltou a tocar a estranha canção familiar. I have no one to meet and the ancient empty street's too dead for dreaming. Ela apoiou os braços no meio fio, inclinou as costas e olhou ao redor. Não havia nenhuma construção no seu raio de visão, apenas uma vegetação rasteira e algumas árvores esparsamente dispostas pelo campo. A grama ia até onde a vista alcançava, subindo e descendo em pequenas elevações. Rochas gigantescas completavam a paisagem, que era tão desolada quanto a música triste que o rapaz soprava na gaita. Não havia ninguém.
I have no one to meet.
— E você, Alguém — ele disse, quando concluiu a canção. Ela ainda não conseguia se lembrar de onde a conhecia — para onde vai?
O sorriso dela diminuiu alguns centímetros.
— A nenhum lugar...
...there is no place I’m going to.
Alguns instantes de silêncio se seguiram, até que ambos caíram numa gargalhada.
— Não seria melhor dizermos os nossos nomes? — ela perguntou, enxugando as lágrimas que o riso provocara.
— Precisamos? — ele respondeu, um semi-sorriso enigmático brincando nos lábios.
Por um momento, a pergunta pareceu a ela extremamente óbvia e até um pouco absurda. Ela abriu a boca com um “claro que sim” já equilibrado na ponta da língua, mas a insistência do olhar dourado do rapaz lhe trouxe uma clareza que ela havia experimentado poucas vezes na vida. Sorriu.
— Você pode continuar sendo Ninguém.
— E você é Alguém. Ao menos está em vantagem.
— Nomes são apenas nomes, Ninguém. Posso ser Alguém para você, mas até há poucos minutos, na estrada, eu e você poderíamos compartilhar o mesmo nome.
— Eu sou um Ninguém que vai a lugar nenhum. Você é Alguém que vai a nenhum lugar. Qual de nós dois é o pior?
Ela deu de ombros.
— Há uma história? — ele perguntou, depois de alguns segundos de silêncio tênue.
— Não. — ela respondeu, seca.
— Tem que haver. Há uma história por trás de tudo.
I'm ready to go anywhere.
— Não há muito para saber. Não tenho muitas coisas. Em lugar nenhum. Então estou constantemente deixando lugares que não me pertencem. Hoje, deixei mais um...
Um gosto muito amargo se espalhou pela ponta da língua dela.
— Sabe aquelas pessoas que colecionam posses? Eu sou exatamente o contrário...

            — Eu acho que você é uma grande covarde, Alguém. — ele disse, sem inflexão alguma na voz.
Ela ergueu as sobrancelhas. Ele havia imprimido àquela frase, cruel de tão honesta, uma casualidade tão autêntica que ela não conseguiu procurar palavras para se defender. Apenas o encarou, a boca entreaberta, numa muda espera por uma explicação.
I'm ready for to fade into my own parade.
— Isso que você chama de ‘deixar’, ‘partir’, ‘mudar’, na verdade é um grande e belo ‘fugir’. Você está fugindo. E não é de algo ou alguém. É de uma coisa que não importa onde você vá, continuará com você.
Ele era uma espécie de psicólogo, vidente, terapeuta ou algo assim?
— E o que é?
— Bem, aí eu já não sei. ­— ele sorriu e pôs a gaita nos lábios, voltando a tocar a melodia de antes.
Ela riu.
— Eu podia jurar que esse seria o momento em que você diria uma frase de efeito... Daquelas que identificam todo o problema e apontam a melhor solução...  
— Eu, não.
— Quem é você pra me lançar uma bomba dessas no colo e me deixar sem respostas?
— Eu sou Ninguém, lembra? A resposta está no vento... Ou onde você quiser. Isso não é importante agora, Alguém.
…wait only for my boot heels to be wanderin'.
Ela permaneceu ao lado dele durante toda aquela canção e mais algumas que se seguiram. O sol brilhava com um calor decidido. Ela tentou insistentemente lembrar de onde conhecia a primeira música, a que ele estivera tocando durante quase todo o dia. Era como se algo lhe soprasse que ela precisava saber o nome daquela canção... E outro algo, ainda mais forte, a impedisse de perguntar a ele.
I promise to go under it.
Até que ele se levantou, sacudiu a poeira da roupa e, com um aceno, se afastou em direção às rochas que se erguiam como testemunhas daquele nada.
— Espero que você descubra suas respostas, Alguém. Aliás, espero que você descubra as perguntas, primeiro.
— Ei! — ela chamou, quando ele era quase uma silhueta recortada contra o sol. — Onde você vai?
— A lugar nenhum, já disse...
Ela o observou se afastar, incrédula. Havia se esquecido da trivialidade do passar do tempo. Havia se esquecido de que havia vida além daquela estrada, afinal. A súbita distância dele a arremessou naquele poço de realidade... E a sensação definitivamente não era boa.
Até que ela se lembrou do nome da canção. E sorriu.

           


8 comentários:

Rhu disse...

Sempre bom encontrar coisas que nos fazem escrever naturalmente, quase que vivendo a prosa.

Uiberon disse...

Que texto lindo. Eu diria bonitinho, e lindinho pela fofura, mas ele merece o adjetivo integral.
Suave e filosófico, gostei do texto. Faz algum tempo que não vejo algo assim por aqui. (Se é que estou sendo justo). Come on, baby, keeps writing like Johnny do what he do best.

Ari Denisson disse...

Só achei estranho que ela, depois de uma insistência considerável em querer imprimir identidade às coisas, rapidamente chegasse à conclusão de que "nomes são apenas nomes". Mas é envolvente. E eu tenho que ouvir Dylan.

Victor disse...

BEEEEEEM Road Movie (me gusta). Aliás, não sei se existe um nome para a contraparte literária dos filmes de viagem, mas é curioso como a gente não associa um texto lido a um espaço que se percorre né?

crap disse...

"Há uma história por trás de tudo." e me frustra muito saber que eu sou incapaz de contar bem essas histórias todas que existem por aí, só esperando para serem contadas.

gostei do texto, lud. melhor que o anterior, para mim. achei os diálogos bem fluidos, texto leve, sem nenhuma descrição exageradamente longa ou coisa do tipo.
continue escrevendo.

Marden disse...

Concordo com o PV e acrescento que é nesse estilo que você faz o seu melhor, maninha.

Continue assim!

Ps: Deixe de enrrolar e me passe o texto do farol

Marco Fischer disse...

Gostei, gostei. O tocador de gaita é um personagem bem interessante, misterioso sem ser forçado, como todo o conto, aliás. Depois de tanto tempo de ausência, foi um retorno curioso. Boa imersão na atmosfera de beira de estrada, com o tipo de encontro que só acontece nesses lugares.

nelson netto disse...

bom texto. bastante natural, o mistério, as paisagens, a música. nada forçado.

parabéns =*