“Nossa,
você é quase um déjà vu”, ele disse às costas dela, enquanto subiam no ônibus.
Ela franziu as sobrancelhas e olhou pra trás, na dúvida se era com ela que
falavam, percebeu o olhar sorridente, sorriu também. “Você diz isso pra toda
menina que sobe no ônibus com você?”, respondeu. “Somente para as que parecem
saber o que é um déjà vu”, ele alcançou o último degrau. Ela riu. Tirou o
porta-níqueis da bolsa, catou algumas moedas, encostou o corpo à roleta. “E eu
sou um déjà vu do quê?”, ela com a mão estendida para o cobrador. Ele apoiou o
queixo em uma das mãos (a outra tateava a pasta à procura de dinheiro), fingiu
pensar. “Infância... Retorno...”, disse. Ela já avançava para os fundos do
ônibus, as mãos agarrando firmemente as barras de apoio. Parou no terceiro
passo, olhou para trás, sorriu. Ele sorriu de volta, o motorista acelerou, a
lei da inércia o jogou contra a catraca, outra lei o puxou para o chão. Alguns
passageiros riram. Ela riu. Adiantou-se para ele e estendeu a mão. “Opa!”, “Mas
que mico...”, “Todo mundo cai, relaxe”, “Ninguém nesse mundo cai mais que eu”, “É
uma história de amor entre você e Newton”, “Odeio física”, “Mas por que eu sou
um déjà vu de retorno e infância?”. Ele se empertigou. “É o que era a minha
infância. Cheiro de lavanda, banhos demorados...”.
“Então é esse tipo de déjà vu?”, ela arregalou os olhos. “Brincadeira”, caíram na gargalhada e
se recompuseram ao perceber o olhar atento de alguns passageiros. Ela caminhou
para os fundos. Ele não se mexeu. “Você não vai sentar?”, ela perguntou,
indicando dois lugares vazios com a cabeça”. “Achei que você não ia me
convidar”, “Precisei. Você é muito ousado com desconhecidas, não podia deixar
aquelas senhoras” ela apontou para as passageiras “à mercê da sua companhia
nefasta”. Riram, sentaram-se lado a lado. “Mas elas não parecem um déjà vu”,
ele sorriu e a encarava por trás das lentes. “Bom pra elas”, “Me desculpe, você
se parece muito a menina que eu espiava tomar banho no quintal da casa vizinha”,
“Isso é bom?”, “Bem, ela era linda”, “Sua infância deve ter sido agitada”, “Minha
fase fálica durou mais tempo que o normal”. Ela riu. “Eu sei bastante sobre sua
infância, mas não sei seu nome”, “É um nome estúpido”, “Luna”, “Wagner”, “Wagner?”,
ela riu. “Eu disse que era estúpido”, ele deu de ombros. “Não é estúpido. É
alemão. É meu compositor favorito”. Ele ajeitou os óculos, surpreso. “Richard
Wagner?”, “Esse mesmo... Por quê a surpresa?”, “Ou não entendo de música clássica, ou ninguém cita Wagner como preferido”, “Você não entende de música clássica”, “Não entendo mesmo”, “E não merece se sentar ao meu lado”, “???”, “É. Sou xiita”. Ele franziu
as sobrancelhas e ela sustentou-lhe o olhar por alguns segundos até cair num
riso fácil. “É brincadeira...”, ela apoiou o rosto numa das mãos e o encarou
com uma espécie de sarcasmo enigmático nos olhos. Ele sentiu um formigamento
nas costas. Piscou. Chovia. “E por que falávamos de Richard Wagner num ônibus
se tem tantas coisas mais banais para discutirmos... Como o clima?”, ele para apontou
as gotas que desciam pela janela. Ela desenhou com o dedo no vidro embaçado. “D...
E... J... A...”, ela puxou os dois acentos, um sobre cada vogal, “V... U. É por
isso”. “Uma familiaridade estranha”, “Mais ou menos assim”, “Tem certeza que
você não é a filha da minha vizinha da infância?”, “Crianças são muito iguais”,
“Tem certeza?”, “Meu ponto é o próximo”, dois olhares vacilantes. O ônibus
acelerou. “E então?”, “...”, “Tchau?”, “Não é todo dia que a gente encontra um
déjà vu”, “Onde é seu ponto?”, “Pode ser o próximo. Ou” ele apontou pela janela
um letreiro luminoso vários metros à frente “pode ser aquele ali também”. Ela
sorriu. “Infância, não é?”, e ele sorria também, “Sim”, “Retorno, não é?”, “Absolutamente”,
“Um banho demorado...”, “Sim”. Ela colou os lábios ao ouvido dele e falou
baixinho “Tinha um furo no muro do quintal... Às vezes, dava pra te escutar”.
8 comentários:
Adorei hahahaha
'“Onde é seu ponto?”, “Pode ser o próximo. Ou” ele apontou pela janela um letreiro luminoso vários metros à frente “pode ser aquele ali também”.'
(L)
o resto você já sabe.
Uau, que narrativa massa! Fica a sensação de "tem mais?" rs. Bacanão, Ludmila.
Faz a gente viajar no tempo... Muito bom!
Lindo o texto amiga! kkkk
Adorei! Só li verdades.
Passa lá no meu blog!
Tô te seguindo!
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^- rindo disso.
Wagner, a decepção nominal? Gostei do ritmo da narrativa :p Grandes déjà vus...
Eu gosto, soa um sei lá o quê meio nostálgico de coisas que talvez não tenham acontecido (ainda?)... Muito simpático. Hora de escrever coisa nova.
Trocaram contatos, ele nunca mais apareceu.
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