(pro @eduardoleite, que me emprestou palavras e uma história. Seu Marcelo Camelo também, algumas. Pouquinhas. E Rodrigo Amarante, o tal cantor de voz etílica).
De tudo o que havíamos sido, só restou um rolo de filme por revelar.
De tudo o que havíamos sido, só restou um rolo de filme por revelar.
Lembro
que ele achava engraçada essa minha nostalgia analógica, de querer registrar
tudo em negativos e revelar depois, mesmo que só pra mim. “Por que você não
expõe?”, ele me perguntava, e eu dava de ombros. Acho que eu tinha medo. Medo da
fugacidade dos olhares digitais. Será que as pessoas entenderiam? Será que
saberiam guardar o mesmo silêncio daquelas fotografias, escritas só com luz e
perpetuadas em papel fosco? Será que, na falta de botões de polegares erguidos,
saberiam expressar o gostar ou o não gostar?
Eu
não sabia. E por não saber, guardava tudo o que via através das minhas lentes
pra mim. E pra ele. Ele chegava de mansinho atrás de mim, enquanto eu mesmo
admirava minha parede fotográfica – eu sem saber se gostava do que via ou se
meu olhar por detrás da câmera era tão caótico quanto eu mesmo – apoiava o
queixo no meu ombro, dizia baixinho “você é bom nisso, sabia?”. Eu não precisava
do resto do mundo se ele sabia ler o que eu escrevia com a luz. Aquilo era
felicidade, e era bom.
Bem,
já não éramos mais. Estávamos protegidos pelo invólucro de plástico do filme. Escritos
com luz, mas só. Que bom que pensamentos dele não eram tão perpétuos quanto
foto impressa. A mente é falha. A mente engana. A mente dilui as coisas boas e
más (infelizmente, estas últimas são mais resistentes ao tempo). Fui esquecendo
dos detalhes. Pormenores, como sua risada, as lentes arranhadas do seu óculos
ou a barba áspera e cheia de falhas. O filme e cor favoritos, as manias que
mais me irritavam, a cidade que foi palco de toda a nossa dança. A cidade
cortada por cinco rios. Meu coração cortado em cinco pedaços.
Bom
que o tempo passa. Que nossas cidades se separam por algo maior e mais
caudaloso que cinco rios. Que as memórias se perdem num mar de neurônios. E que
a felicidade que eternizamos nos fotogramas estava a salvo dos olhos do mundo e
dos meus. Assim era seguro. Minha vida seguiu, perfeitamente equilibrada nos
trilhos mornos da normalidade. Meus olhares digitais faziam sucesso entre os
amigos. Eu fazia o que gostava pra viver. Aquilo era a vida normal, e era bom.
Num
domingo de nada pra fazer, me cansei da insipidez da vida. Resolvi arrumar as
caixas empoeiradas que abarrotavam meu armário. Mal empilhadas, ameaçavam
desmoronar à menor corrente de ar que soprasse. Pus o vinil do cantor de voz
etílica para tocar. Liguei o ar-condicionado. Seria um bom dia.
Bloquinhos
rabiscados com jogos-da-velha e forcas. Crachás de eventos. Certificados e
horas flexíveis. Meu Deus, como eu era excepcionalmente bom em acumular meu
passado. CDs piratas dados pela amiga (ela sentia uma falta danada das mixtapes
e insistia em me enviar playlists em suporte físico). Uma risada ao encontrar
as fotocópias de aulas tediosas. Senti saudade do meu bom humor dos últimos
anos de juventude. Era tão melhor não carregar tantos poréns no coração, ô se
era!
Até
que achei uma caixa. Propositalmente soterrada no fundo do armário. Sem estampas
nem etiquetas. Meu coração gelou quando eu a abri e encarei o tubo de plástico
e sua tampa cinzenta, solitário e acusador. Quase pedi desculpas pela
negligência. Bem, o tempo já havia cuidado de mim, e afinal de contas, meu
espírito de fotógrafo queria saber da qualidade daquelas fotos. Meu ego às
vezes me mata.
Fui
até o quartinho, nos fundos do quintal, fechei as portas, acendi a lâmpada
avermelhada e me pus a trabalhar. Foram três, quatro horas tão lentas. Meu coração
se enegreceu quando encarei aquele sorriso. O seu sorriso. A sua barba falhada.
Seu olhar que eu nunca entendi se aprovava ou escarnecia. Sua risada. Sua voz
quando me dizia “você devia expor”. Os cinco rios. Aquela cidade. Tudo. Saí daquele
cômodo com o coração mais escuro que ele mesmo.
Você
deve estar bem, não é? Não te falta carinho ou carnaval, pelo que vejo por aí.
O que nos sobra é estrada... E olha, você estava certo. Eu realmente deveria expor.
Foi o que eu fiz. As pessoas gostaram
das minhas fotos. Felizmente, souberam lidar bem com a ausência do tal botão
aprovador. Me fizeram ter um pouco mais de orgulho de mim mesmo e eu me lembrei
de que elogios face a face são tão melhores que um bando de joinhas digitais. Meu
sorriso só se apagou quando encarei a galeria vazia, altas horas da noite,
preenchida de você.
Revelar
aquele filme foi a pior melhor ideia que já tive. Pus em quase todo lugar a
foto mais bonita que eu fiz: você olhando pra mim. Você me encarava de todos os
cantos da galeria e aquilo doeu. Porque havia sido felicidade... E havia sido
bom.
6 comentários:
muito bonita dona Ludmila, muito bonito mesmo.
gostei muito! uma versão analógica (e boa) d'os famosos e os duendes da morte.
;D
muito bom, você devia expor rsrs =)
Mas afinal, o que é a realidade perto dos retratos que fazemos dos nossos desejos solenes?
E se pudéssemos transcrever os feitos dos nossos corpos em certeza?
Acho apenas que coisas acabam ficando no mesmo lugar que já estavam.
Demorei. Adorei, mesmo com a referencia a lh e essa importancia a imagens (claro, sao.importantissimas, mas eu sou um cara de somente leçbranças). Escrever com a luz foi foda, mas achei impreciso. Desenhar com a luz parece mais fotografia.
As vezes pensei: excelente escolha de palavras. Isso eh bom. :)
Não sei, estou com uma certa repulsa à fotógrafos.
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