(Dylan é o responsável pelos versos da música).
Não eram nem
cinco da manhã quando ela o avistou na estrada, sentado no meio fio, tocando
uma canção em sua gaita. Ele parecia extremamente familiar, ainda que ela nunca
o tivesse visto antes – quase um déjà vu, sentado contra o sol, os
cabelos cacheados envoltos por um halo dourado. Parecia estar alheio ao resto
do mundo (não que acontecesse muita coisa na estrada àquela hora).
Ela conhecia
aquela música de algum lugar...
Havia algo de
nostálgico naquela visão solitária, no modo imperturbável como ele tocava
aquela gaita levemente desafinada, naquela bruma entremeada pelo claridade
pálida do dia recém-nascido. Ela puxou o freio de mão e dedicou alguns minutos
a olhá-lo, entre intrigada e deliciada por algo tão inusitado a acontecer fora
das vistas do mundo. Ele continuava tocando, de olhos fechados, sem aparentar
ter escutado o barulho do motor do velho Volkswagen.
— Quem é
você? — ela se surpreendeu perguntando em voz alta.
Ele ergueu os
olhos e uma sobrancelha, sem desencostar o instrumento dos lábios.
— Ninguém. —
respondeu, com a voz abafada. Soltou um acorde dissonante antes de voltar à
canção.
— Ei, Ninguém
— ela disse enquanto saía do carro e batia a porta com descuido. — Bela música.
Ele não
respondeu nada, mas parou de tocar. Mirou-a com um olhar pouco amigável, como
se houvesse sido flagrado durante um delito e ainda assim a julgasse culpada ao
invés dele. A hostilidade a atraiu imediatamente. Havia algo de feroz nos olhos
dele que, para ela, era uma espécie de intimação a permanecer ali e descobrir
mais, como se ele fosse algum objeto de investigação. Ela se sentou ao lado
dele no meio fio. Ele voltou a tocar.
— Você devia
me dar mais atenção, Ninguém. Você está a quilômetros da cidade mais próxima e
eu não acho que o fluxo de carros por aqui vá aumentar tão cedo. — ela disse,
ajeitando a franja rebelde atrás da orelha. — Talvez eu seja sua única chance
de sair daqui.
Ele
finalmente tirou a gaita dos lábios, num riso torto.
— E quem te
disse que eu quero sair daqui? Alguém te pediu alguma coisa? Eu cheguei
aqui sozinho, não foi?
Ela pôs as
mãos no peito, fingindo indignação.
— Ai... Essa
doeu, Ninguém.
Ele a encarou
e ela notou alguns detalhes do seu rosto que o sol não havia permitido enxergar
quando ela estava no carro. Os olhos de um castanho levemente dourado, a barba
rala, o tom pardo da pele. Ele não chegava a ser exatamente bonito, mas emitia
um magnetismo quase impossível de ignorar.
Ele a olhou
impassível por alguns segundos até que se cansou da máscara desconfiada e
suspirou.
— Me
desculpe. Faz um bom tempo que temos sido somente eu e ela — ele indicou sua
gaita com um gesto. O instrumento era de um azul escuro e profundo, adornado
por detalhes dourados. Parecia extremamente antigo. — Estou desacostumado a
lidar com gente.
— Entendi...
E para onde você está indo, Ninguém?
— Lugar
nenhum.
Ela deu uma
gargalhada.
— Ninguém vai
a lugar nenhum?
Ele sorriu e
voltou a tocar a estranha canção familiar. I have no one to meet and the
ancient empty street's too dead for dreaming. Ela apoiou os braços no meio fio,
inclinou as costas e olhou ao redor. Não havia nenhuma construção no seu raio
de visão, apenas uma vegetação rasteira e algumas árvores esparsamente
dispostas pelo campo. A grama ia até onde a vista alcançava, subindo e descendo
em pequenas elevações. Rochas gigantescas completavam a paisagem, que era tão
desolada quanto a música triste que o rapaz soprava na gaita. Não havia
ninguém.
I have no one to meet.
— E você,
Alguém — ele disse, quando concluiu a canção. Ela ainda não conseguia se
lembrar de onde a conhecia — para onde vai?
O sorriso
dela diminuiu alguns centímetros.
— A nenhum lugar...
...there is no place I’m going to.
Alguns
instantes de silêncio se seguiram, até que ambos caíram numa gargalhada.
— Não seria
melhor dizermos os nossos nomes? — ela perguntou, enxugando as lágrimas que o
riso provocara.
— Precisamos?
— ele respondeu, um semi-sorriso enigmático brincando nos lábios.
Por um
momento, a pergunta pareceu a ela extremamente óbvia e até um pouco absurda. Ela
abriu a boca com um “claro que sim” já equilibrado na ponta da língua, mas a
insistência do olhar dourado do rapaz lhe trouxe uma clareza que ela havia
experimentado poucas vezes na vida. Sorriu.
— Você pode
continuar sendo Ninguém.
— E você é Alguém.
Ao menos está em vantagem.
— Nomes são
apenas nomes, Ninguém. Posso ser Alguém para você, mas até há poucos minutos,
na estrada, eu e você poderíamos compartilhar o mesmo nome.
— Eu sou um
Ninguém que vai a lugar nenhum. Você é Alguém que vai a nenhum lugar. Qual de
nós dois é o pior?
Ela deu de
ombros.
— Há uma
história? — ele perguntou, depois de alguns segundos de silêncio tênue.
— Não. — ela
respondeu, seca.
— Tem que
haver. Há uma história por trás de tudo.
I'm ready to go anywhere.
— Não há
muito para saber. Não tenho muitas coisas. Em lugar nenhum. Então estou
constantemente deixando lugares que não me pertencem. Hoje, deixei mais um...
Um gosto
muito amargo se espalhou pela ponta da língua dela.
— Sabe
aquelas pessoas que colecionam posses? Eu sou exatamente o contrário...
— Eu acho que você é uma grande covarde, Alguém. — ele
disse, sem inflexão alguma na voz.
Ela ergueu as
sobrancelhas. Ele havia imprimido àquela frase, cruel de tão honesta, uma
casualidade tão autêntica que ela não conseguiu procurar palavras para se
defender. Apenas o encarou, a boca entreaberta, numa muda espera por uma
explicação.
I'm ready for to fade into my own parade.
— Isso que
você chama de ‘deixar’, ‘partir’, ‘mudar’, na verdade é um grande e belo ‘fugir’.
Você está fugindo. E não é de algo ou alguém. É de uma coisa que não importa
onde você vá, continuará com você.
Ele era uma
espécie de psicólogo, vidente, terapeuta ou algo assim?
— E o que é?
— Bem, aí eu
já não sei. — ele sorriu e pôs a gaita nos lábios, voltando a tocar a melodia de
antes.
Ela riu.
— Eu podia
jurar que esse seria o momento em que você diria uma frase de efeito...
Daquelas que identificam todo o problema e apontam a melhor solução...
— Eu, não.
— Quem é você
pra me lançar uma bomba dessas no colo e me deixar sem respostas?
— Eu sou
Ninguém, lembra? A resposta está no vento... Ou onde você quiser. Isso não é
importante agora, Alguém.
…wait only for my boot heels to be wanderin'.
Ela permaneceu
ao lado dele durante toda aquela canção e mais algumas que se seguiram. O sol
brilhava com um calor decidido. Ela tentou insistentemente lembrar de onde
conhecia a primeira música, a que ele estivera tocando durante quase todo o
dia. Era como se algo lhe soprasse que ela precisava saber o nome daquela canção...
E outro algo, ainda mais forte, a impedisse de perguntar a ele.
I promise to go under it.
Até que ele
se levantou, sacudiu a poeira da roupa e, com um aceno, se afastou em direção
às rochas que se erguiam como testemunhas daquele nada.
— Espero que
você descubra suas respostas, Alguém. Aliás, espero que você descubra as
perguntas, primeiro.
— Ei! — ela
chamou, quando ele era quase uma silhueta recortada contra o sol. — Onde você
vai?
— A lugar
nenhum, já disse...
Ela o
observou se afastar, incrédula. Havia se esquecido da trivialidade do passar do
tempo. Havia se esquecido de que havia vida além daquela estrada, afinal. A súbita
distância dele a arremessou naquele poço de realidade... E a sensação
definitivamente não era boa.
Até que ela
se lembrou do nome da canção. E sorriu.