De início, eu não entendi o seu olhar quando você escolheu um CD qualquer e pôs no som do carro. Uns dois segundos de silêncio, até que o aparelho, que não era dos mais novos (“hora de trocar, não acha?” “ah é, lindinha? Você vai pagar?”), começou a tocar. E nos primeiros acordes da música, eu entendi.
— Seu filho da mãe! — exclamei, arregalando os olhos.
Você riu e cantou.
— Charades, pop skill, water hyacinth named by a poet... — sua voz nunca me soou ruim. Você até que era bem afinado. Mesmo cantando aquela música em questão.
— Por que você faz isso comigo, seu infeliz? — franzi o cenho. Já fazia tempo que eu não conseguia ouvir aquela música. Você era a causa. E sabia muito bem.
— Por que essa música é boa demais pra você ter alergia a ela. — você entregou, o sorriso ainda maior. — I don’t want to hear you cry...
Suspirei. Há meses não conseguia escutar a tal canção sem lembrar de chuva, muita chuva. Você parado no meio da rua, trêmulo, encharcado. E eu gritando o quanto te odiava e o quanto nunca mais queria te ver. E você respeitou meu desejo, se ‘nunca mais’ significar quatro meses de silêncio intermitente. Apaguei tudo o que dizia respeito a você da vida, instâncias real e virtual, porque até mesmo os rastros digitais, orkut, facebook, twitter, a parafernália toda, me faziam mal. Sim, porque te odiei te amando. E te amando, qualquer referência sua seria um pontapé no cotovelo, daqueles bem certeiros, na articulação.
— Come on, come on, no one can see you try...
O motivo foi idiota, dizendo o mínimo. Na verdade, foi daquelas bobagens que a estupidez de gente hiperdimensiona – bobagem tão boba que fiz questão de esquecê-la. Boba e reincidente. Eu não sabia lidar com minha instabilidade de série, você, muito menos... Deu no que deu.
— You’ve got it all, you’ve got it sized… — você continuou a cantar e me instigava com os olhos.
O CD que você me deu de presente – aniversário de namoro, não lembro de quantos meses (na verdade, nunca fui muito fã de comemorar os meses, vitória mesmo seria se alcançássemos a marca de anos) – ficou decidido como nossa trilha sonora de casal ‘alternativo’. Tudo bem que isso soou juvenil aos meus ouvidos, tão juvenil quanto comemorar meses de namoro, mas fazer o quê? Você estava empolgado feito uma criança e eu, caidinha por você. Que é bobo, mas tem um senso de humor agudo e a inteligência de quem leu muitos, muitos livros. Fora que a gente ria demais um da cara do outro (e das caras alheias). Enfim...
— Like a Friday-fashion-show-teenager freezing in the corner… — juntei-me a você, na minha voz rouca que você definia como ‘de intérprete de bossa nova’. Eu detestava bossa nova, e você sabia (“Miúcha é a mãe!” “É um elogio, ô ignorante!”).
— Trying to look like you don’t try…
E depois de todo o hiato, dois bimestres inteiros de faculdade em que eu consegui perder duas das matérias obrigatórias; várias noites insones olhando fixamente para o visor do celular, achando que a qualquer momento você ligaria; duas ocasiões em que você realmente ligou, às quatro da manhã, mas eu não tive coragem de atender porque não sabia de fato o que iria dizer; quatro encontros casuais nos locais mais inusitados, que eu passei a freqüentar justamente por não ver neles lembranças suas (o que não adiantava muito, já que não ter estado ali com você poluía o lugar inteiro de lembranças nossas)... Você me ligou em horário comercial, e eu resolvi atender.
— That sugar cane that tasted good, that’s cinnamon, that’s Hollywood, come on, come on, no one can see you try...
Você quis me ver. Quis passar aqui em casa às seis. E quando senti as reações do meu corpo à sua voz – a umidade da boca fugida inteiramente pros olhos, taquicardia, tremor nas mãos – pensei, puta merda, ainda é amor. Receei que te ver talvez jogasse areia em antigas feridas, mas percebi que a alma gritava por isso. E quando a alma grita... Só pode ser saudade.
— Por que você me chamou aqui?
— Eu já disse.
— Não tente me convencer de que é por causa dessa música.
— Do CD inteiro, que sei que você quebrou num acesso de raiva...
— Quem te disse?
— Sua irmã.
— Ah.
— Eu suporto tudo. Não te ver mais, que você me odeie pra sempre e toda a eternidade por não ter te entendido como devia, que você me difame... Mas não que você deixe de ouvir esse álbum do R.E.M. É bom demais.
— Você esperou quatro meses pra me dizer isso?
— Ahn? Tá... Tem o adicional de que eu te amo e tudo o mais, mas faz tempo que eu desisti de tentar porque a gente tem se ignorado, né? Encontros, ligações... Nada deu muito certo, então...
— ...
— Tava doendo, sabe. Você não pode me culpar nem me acusar de covarde. Tava doendo e eu achei melhor tentar te esquecer.
That’s who you are, that’s what you could...
Fiquei muda até o refrão. Que cantei, sorrindo acanhada, e você sorriu de volta. A música estava bem alta, mas eu pude jurar ouvir teu coração martelando numa velocidade de doer, ou talvez fosse o meu próprio. Num assomo de coragem, nos beijamos – não sei de quem foi a iniciativa, quem beijou quem primeiro. Mas seus lábios tinham o gosto de sempre, trident de canela, e toda a falta que eu senti de você me acometeu de uma vez.
— Ah — você disse ao meu ouvido, quando nos separamos — você devia ouvir a versão acústica dessa música... É sensacional.
…come on, come on, no one can see you cry.