domingo, 31 de janeiro de 2010

Paladar

“Inverossímel tem gosto de manga”.

Ela gostava da palavra, mas detestava manga. Tentou soletrá-la devagar, cada sílaba dançando em sua língua, pra tentar atenuar o gosto. Impossível. Era sempre manga.

Quem sabe outra palavra... Ela consultou a mente, à procura das palavras mais exóticas e que lhe soavam bonitas. Desenxabido. De-sen-xa-bi-do. Hmmm! Algo crocante. Nozes? Castanhas? Ela não sabia, mas o gosto lhe agradou. Poderia passar o dia inteiro murmurando desenxabido. De-sen-xa-bi-do. Nozes, definitivamente.

Muitos a olhavam e torciam a boca num explícito desdém. “Olha a menina estranha”, murmuravam, o rosto traduzindo escárnio e até algum receio. Ela sabia disso. Estranha tinha gosto de repolho. O que não era bom. Mas a quase hostilidade das pessoas não a feria mais. A solidão não era tão má companheira. Solidão tinha gosto de ameixa.

Ana vivia sozinha a murmurar pelos cantos, às vezes, fazia careta, noutros momentos, sorria e estampava no rosto um imenso prazer. “Acham que eu sou louca”, ela confabulava consigo mesma. “Acham que eu sou louca porque falo sozinha. Mas eu sou uma sinestesia ambulante”.

Quando algum corajoso aventurava-se à companhia de Ana, ela quedava-se apreensiva. Nunca se sabia que palavras escolher. E se seu novo companheiro se metesse a falar “crise”, “política” ou “bolsa”? Aquelas palavras tinham um gosto acre que fazia arderem os olhos de Ana. E então, sem querer, ela perdia seu ex-futuro-quase-amigo, que ia embora ofendidíssimo pelas caretas da moça.

Só existia uma palavra que mudava de gosto.

Amor. Às vezes amor tinha gosto de sonho. Ana tinha muita sede quando falava dele. Mas o mundo parecia perder a gravidade (que tem gosto de calda de pudim) as cores apareciam como que realçadas.

E havia o amor sabor entranhas. Ana não tinha opção senão regurgitar quando este permeava seus pensamentos – e sua língua. A gravidade triplicava. O mundo se afogava num abismo monocromático. E Ana chorava.

Ana sentia o gosto das palavras, mas às vezes só o que queria sentir era o gosto das suas lágrimas.

14 comentários:

Mitch! disse...

qqqq
Que profundo................
*Capacidade literária 0 (L) - sempre escreve esse comentario (y)*
[Pensamento interno q nunca demonstraria para a amiga: Sóooo vei...... AISFHAWUIEFHAWEF brinks]

ISA disse...

Este é daqueles contos-pílulas que a gente lê com uma das mãos sob o queixo e nos deixa reflexiva. Ou talvez saudosa de uma literatura moderna que poucos fazem.

Pena que ainda não te descobriram.

Unknown disse...

Mas as lágrimas são tão salgadas, já as palavras existem das duas categorias, doces e salgadas..
A verdade é que a vida precisa se manter agridoce..

Marden Linares disse...

Uia só. Muito bom maninha.
Eu te disse que as sutilezas era muito mais o seu genero. Muito, muito bom.
Os três primeiros paragrafos descrevendo ela degustando as palavras ficaram sensacionais.

Ah, e eu bem sei de onde você tirou o nome dela...

Rafa disse...

*_* Adorei esse texto, pensar nos sabores das palavras é algo que eu vivo fazendo... além dos sons delas, claro, como se fossem notas... Tá bom de atualizar mais viu, sumida? Quero ler seus contos nas férias também! Beijos pra você! o/

Anônimo disse...

Você é indescritivelmente foda! ;OOOO

Kyou disse...

Vai a merda e deixa de ser boa

Derek Gustavo disse...

Lud!!!!!

Eu já disso isso aqui antes, mas vou dizer de novo: eu gosto do seu estilo de escrever: claro, direto, mas, ainda assim, profundo!

Adorei!!!

Bj!!

Rivison disse...

Muito bom, mocinha... Tbm acho sinestesia um assunto bem interessante, e agora, com essa personagem que vc criou, acho mais interessante ainda. Bjão

Anônimo disse...

kkkkkkkkkkkkkkk Eu ia colocar no final que a música era Saia e Bicicletinha, mas aí ia quebrar muito o ritmo da história =X

Ariane disse...

Você tratou tudo de forma tão delicada,deixou tão simples e belo o texto. Lindo de verdade Lud,de verdade verdadeira. Adorei ler.

Elayne Pontual disse...

:O

Acho que esse foi o melhor texto que eu li no seu blog...

MUITO BOM! :O

nelson netto disse...

poxa...
comecei gostando muito, dps foi ficando meio normal.
acabei dando um desconto porque n discuto o gosto do amor.
no fim eu gostei!
=**

crap disse...

sinestésico. ou sintestético? enfim, você entendeu.

gostei dos sabores. os três primeiros parágrafos são muito bons. depois você vem com os sabores do amor e isso fica bem bom também. mas os sabores variam de língua pra lingua.