sexta-feira, 7 de março de 2014

Alice

Alice amou, amou muita gente. E a cada vez que Alice amava, eu a via padecer no chão com as mesmas lágrimas de desgosto a manchar-lhe o rosto e o olhar áspero de quem prometia a si mesma jamais se entregar àquelas emoções novamente. Mas ela tinha memória curta, feliz ou infelizmente, e outra vez, e mais outra, e mais outra, eu a vi sangrar até a última gota de sangue do corpo por quem não lhe amava de volta.

Sim, Alice era dotada dessa grande capacidade de amar e de nenhuma capacidade de discernir. Amava, amava, amava, relegava ao próprio futuro o porvir... E odiava a si mesma no fim, por todo o descomedimento, por toda a ânsia de liberar o mundo que guardava em si, pela falta de talento em fazer boas escolhas.

E eu, na penumbra, aguardava pacientemente minha vez.

Porque ela os amava todos, mas não amava a mim. Ela amava mesmo aos que não a queriam, por mais que ela insistisse; aos que a ignoravam mesmo quando ela expunha suas faces mais secretas e mais lascivas.


Sou teu, Alice, mesmo que não queiras.

Mesmo que despedaces minhas rosas murchas

E que escarneças do meu não-amor.

Sou teu, Alice, se tu quiseres,

e se não queres, sou teu ainda.


Eu queria que ela me visse, me notasse, que me olhasse. Alice, quando e se me olhava, sorria com todos os dentes e me envolvia num aperto sem desejo, dizia na voz branda tudo o que eu não queria ouvir. E ainda assim, eu esperei.


Sou teu, Alice, na voz cansada,

Nos meus bons modos, sorriso aberto

E nos meus sonhos, normais que sejam

Que em vão te beijam enquanto somes.

Sou teu, Alice, se tu quiseres,

E se não queres, sou teu ainda.


Não sei o porquê de esperá-la, não sei o que a tornava mais que as outras. Alice era como todas elas e era mais, era uma força da natureza, que não se sabia se partia ou se chegava, se ficava ou se ia embora. Alice nunca era certeza e possuía aquela aura instigante das incertezas que me fazia esperar. E esperar.


Sou teu, Alice, que não me amas

Sou teu, Alice, e de outras tantas

Que a mim não querem, que sou mais um

A teu exemplo, Alice minha

Que não é minha, de modo algum.


E um dia ela me olhou. Também não sei como, também não sei por quê. Nessa história eu sou bom em não saber. Ela me olhou e eu captei um lampejo do que sempre quis ver estampado nos olhos dela. Ela disfarçava, sorria, empurrava o olhar pra longe, desviava o assunto por tangentes e secantes. Mas era minha deixa. Eu não perderia aquele sorriso.

Alice, enfim, cedeu. Era noite ou dia, cerveja ou vinho, um bar ou bistrô? Ela foi suave ao toque. Desmanchou-se sob minhas mãos, e riu um riso solto sob meus lábios, e era tudo maior e mais intenso do que sequer pude imaginar. Ela tinha gosto e cheiro, cantava e gemia, às vezes, permanecia muda sob mim, tentando sincronizar sua respiração com a minha.

Eu a quis de tantos jeitos que ela me quis também. E aí eu senti a verdadeira força do mundo que ela carregava atado às costas e não tinha medo de oferecer. Um infinito particular desses, onde é possível se perder se não vigiamos os passos. Era tentador, mas era aterrador. Confesso – me acovardei. E tive dela aquele mesmo olhar áspero e o mesmo sangue no chão, que ela tentou conter. Não chorava. Não sei se por esforço. Apenas fechou os olhos e indicou com a mão que eu fosse embora.


 Você não merece nada.

 E você merece tudo.

 Contudo, nada foi o que tive.

 E eu tive mais do que pedi.



Desculpe, Alice, o seu amor é doce demais.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Linger

Para ler ouvindo:


— É amor.
— É culpa.
— É tesão.
— É falta.
— E o que nós faremos?
— O que fizemos a vida toda.

Ele roubou o cigarro dos lábios dela, deu uma tragada, aspirou fundo a nicotina e o pousou no cinzeiro enquanto soltava a fumaça devagar. Ela apenas o observou. Desceu os olhos pelas suas costas, pelas cicatrizes lívidas que ladeavam a coluna bem pronunciada sob a pele. Ele apoiou o peso nos dois braços e alongou-se.

— Agiremos como adultos?
— Falaremos sobre o tempo...
— As pessoas...
— O trabalho...
— Uma média aritmética de tudo o que for banal e menos interessante do que o que somos hoje.
— Algo assim.

Ela ainda ressonava sobre os lençóis em desordem. Ele encarava o dia cinza pela janela panorâmica, sentado na cama. O cigarro ainda queimava, esquecido sobre o cinzeiro.

— As coisas não precisam ser assim.
— As coisas não precisam ser.
— Você foge.
— Você luta.
— A fuga é covarde.
— A luta é estúpida.

Ele enterrou o rosto nas mãos, ela continuou a olhá-lo. O relógio do videocassete piscava as 12h que há tempos já não eram, em letreiro azul. A cidade lá fora parecia estagnada. O tempo parecia estagnado. As horas certas passavam despercebidas.

— Por que você não arrisca?
— Por que você não me solta?
— Por que você não me cega?
— Por que você não me erra?
— É quase um poema...

Ele escorregou as mãos para o queixo. Olhou-a pelo canto dos olhos. Ela ainda o observava. Suspirou. Suspiraram. Ele deitou-se ao lado dela, envolveu-a nos braços. Ela prendeu a respiração, imóvel. Ele estreitou o abraço. Tinha cheiro de cigarro e lavanda. Permaneceram mudos, ele, de olhos fechados, ela, com os olhos vidrados, encarando o teto, desejando estar em outro lugar.

— Vamos parecer dois idiotas.
— Eu vou rir.
— Eu vou saber do que você vai estar rindo.
— Vou tentar não pensar nisso.
— Eu vou estar pensando em você.
— Eu sei...

O despertador dela tocou. A tensão que os mantinha imóveis se quebrou, ela estendeu a mão direita para silenciar o aparelho. Alguns segundos de mais silêncio. Ela se sentou na cama. Ele cobriu os olhos com um dos braços e chorou.

— Nós não precisamos nos amar pra fazer isso.
— Mas parece errado não amar depois de fazê-lo.
— A decisão entre amar e não amar cabe unicamente a nós.
— E você acha que é possível escolher entre um e outro?
— Eu acredito nisso piamente. Você não?
— Deixa de ser uma escolha quando as coisas caminham bem.
— Deixa de ser uma escolha para ser...?
— Uma obrigação.
— Você não tem a obrigação de me amar.
— Nem você.
— Mas e se eu quiser?
— Você não quer.
— Tem razão, eu não quero.

Ela o olhou por mais algum tempo antes de começar a se vestir. Apanhou as roupas espalhadas pelo chão, enfiou algumas delas de qualquer jeito em sua bolsa de náilon preto. Passou as mãos pelos cabelos, desamassou a blusa que vestia e o olhou novamente. As lágrimas manchavam a pele morena. Com um último suspiro, ela abriu a porta e saiu.

— E quando eu falar sobre o clima...
— Eu vou estar pensando no quanto você se arrepia quando eu te mordo...
— E quando eu disser que vai chover...
— Eu vou me lembrar do quanto suas mãos são geladas...
— E quando eu disser que nunca mais faremos isso...
— Eu vou pensar no quanto quero fazer isso de novo.

Ela andou por alguns quarteirões, sentindo o sol arder na pele, a tristeza estampada nos olhos franzidos. E lá se ia uma grande história. Poderia ter sido muita coisa, mas não era amor e aquilo doía.







sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Singela canção para Ana

Sai do quarto, Ana, e vem ver o mundo que pode te fazer feliz. É verão, faz calor, a cidade se enfeita de sol e de gente e só você não vê. O mundo quer te ver, Ana, eu quero te ver também.
Você já viu a forma como a lua se reflete no mar? Parece um espelho, Ana. Parece um espelho e o vento salgado que vem da praia envolve o nosso corpo e esquece na gente o cheiro do mar. E as ondas, Ana, você já ouviu? As ondas que quebram na areia e a gente não sabe se é fúria ou carícia? Está tudo lá, Ana, e lá estão todas pessoas a ver e cheirar e sentir e só você se enclausura nesse castelo que me priva de você e que te priva de si mesma.
As pessoas, Ana. Os rostos que se fundem num mar colorido de gente, distinto e indistinto. São tantas nuances e formatos, Ana, quem me dera memorizá-los. Vez em quando eu pesco um sorriso gratuito ou outro, gente que sorri só por sorrir e gente que passa o sorriso adiante e assim o dia ri mais. Aí o riso chega em mim e eu choro, Ana. Eu choro por não poder repassá-lo a você.
Sai desse quarto, Ana, vem ser da gente. Vem ser só sua ou de quem quiser, mas vem ser. Enclausurada você não é, Ana, enclausurada você não vive, só existe. Sai daí e vem ver as feridas abertas da cidade, os esgotos e a miséria, a música e a dança e tudo o mais que existe além da janela. Vem ver a gente que te ama e que de amor não depende, mas se alimenta. Vem ver a gente que quer te ver. Porque com você aí a vida continua, Ana, segue o mesmo rumo de sempre, no mesmo andar morno de sempre... Mas com você, Ana, ela para pra te ver passar.

E sem isso, Ana, não dá pra viver sem.