(Esse texto é o resultado do desafio interblogs que fiz com mais três amigos blogueiros. É baseado no conto Strange Gifts, de Rafaela Albuquerque. A citação em itálico é do livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde).
“Ela não pode estar morta”, ele pensou. “Ela
não pode estar morta e ainda assim ser tão linda. Não... Ela está dormindo...
Ela só está dormindo”.
Ele estendeu a mão para a aquarela. Dourado,
azul, negro, verde, branco, vermelho. Encarou a tela vazia. Com as mãos trêmulas, ele
começou a desenhar o contorno com lápis fino. A cada detalhe que lhe vinha à
memória, seu traço ganhava mais precisão. Ele tinha que fazer aquilo, ou
enlouqueceria.
Branco para a pele. A pele... Ele se
lembrava de como ela parecia translúcida quando saía ao sol. Um halo a envolvia
e sua imagem dançava no ar, etérea, um misto de anjo e miragem. Ele se lembrava
de como o sorriso dela tinha o poder de fazer o mundo girar ao contrário e de
como tudo que era vivo prendia a respiração para vê-la dormir. Ele se lembrava
do cheiro e do gosto e do toque e da maciez. Ele lembrava bem demais...
Dourado, o dourado dos cabelos. As pinceladas
deslizavam pela tela, criavam texturas, tomavam forma e ele lembrava. Ela nunca
cortava os cabelos. Eles lhe caíam pelas costas em ondas, como um véu, ou uma
coroa lhe dada por direito pela própria natureza. Ela costumava dizer que
queria ser Rapunzel e o perguntava, com a voz doce, se ele a buscaria na torre
mais alta. “Na torre mais alta do castelo mais alto”, ele respondia. A lembrança
o fez rir.
“Ela
só está dormindo”.
Os olhos. Os olhos tinham aquele tom de
verde que nenhuma tinta do mundo era capaz de reproduzir. Não quando ela
conseguia imprimir no olhar a intensidade que quisesse. Escuro, quando ela
tinha medo; azulado, quando ela estava curiosa; líquido, quando ela se
contorcia sob ele, quase todas as noites em que estiveram juntos. Não... Os
olhos dela eram impossíveis de pintar. Ele mergulhou o pincel na tinta e
desenhou com cuidado o côncavo dos olhos, os cílios compridos, a sobrancelha
delicada. Os olhos dela estavam fechados.
“Mas
ela está dormindo”.
O vestido. Negro. A cor que ela mais
detestava. O castigo por tê-lo enlouquecido. O contorno dos seios, os mesmos
seios que ele flagrou entre as mãos e os lábios de outro homem, os corpos tão
enroscados que era impossível de dizer quem era quem. E diante da exclamação de
mágoa, decepção e fúria que ele soltara em reação à cena que vira sem querer, ela apenas o
encarou, com frieza nos olhos verdes mais lindos que ele havia visto, e o
mandou embora.
Como se nada houvesse acontecido. Como se
o que havia sido deles fosse nulo. Ele se lembrava do fogo que havia se
irradiado do seu coração para seus braços, lembrava do impulso que o tomou como
se um demônio se apropriasse das suas vontades, e lembrava de como quis
feri-la, arranhá-la, machucar aquela pele alva, quase imaculada. Ele quis
fazê-la sofrer e ao mesmo tempo quis tê-la de volta, com o desespero de quem se agarra à vida. Tudo o que recebeu foram
aqueles olhos frios e sem amor. E a frase, que ela retirara de um livro
qualquer – como se, mesmo no auge da humilhação, ele não merecesse nada que
viesse genuinamente dela. Inexorável feito um final.
Há
sempre algo de ridículo nas emoções de quem deixamos de amar.
Ele lembrava e pincelava o quadro com
violência. Mergulhou o pincel na tinta vermelha e abriu nela feridas, fê-la sangrar
o sangue que ele sentia jorrar de si mesmo. No fim, quando o relógio revelava
que ele havia passado ali a noite inteira e quando os primeiros tons de lilás
começavam a se misturar ao negro do céu, ele a olhou, como se encarasse a
própria redenção. Era aquele o seu castigo: jazer para sempre congelada no seu
traço vingativo, num estado de animação suspensa entre a vigília e a morte.
Uma lágrima pareceu escorrer do rosto
dela. Ele levou a mão até os olhos e percebeu que também chorava. Pegou o
quadro, ainda úmido de tinta, e beijou sua pintura na testa.
— Durma bem — sussurrou.