(texto escrito em parceria com Rhuana Caldas)
A cabeça dela não estava ali, comigo. Eu o sabia e,
sem querer, nem entender as razões, sofria por isso. Não desgostava dela, na
verdade, era justamente o contrário – achava-a uma graça. Viva, extremamente
honesta com os próprios sentimentos, alerta, ideias simples e
fortes. Por ser daquele jeito descomplicado, era fácil estar ao lado dela,
fácil querer ouvi-la e querer ser ouvido por ela. Não, eu gostava dela. Mas não
estava apaixonado. Não pensava nela como a mulher que era.
Feia? Muito menos. Incomum, eu diria. Exótica (ela
ficava possessa quando a descreviam assim – “eufemismo pra horrorosa, não é?”).
Ela era sedutora sem se esforçar para isso. Talvez o melhor sobre ela fosse o
fato de ela desconhecer a força do próprio olhar, que às vezes carregava uma
languidez que ela, na verdade, nem sentia.
Não sei porque nunca a olhei direito. Talvez fosse a
força da amizade, que ligava meus instintos quando ela, distraída, me olhava de
lado, com uma das mãos afastando o cabelo do rosto. Não sei, não sei.
Durante algum tempo, naquela noite, ela estava como
sempre, falante, alegre, descontraída. Começou quando ela trocou o Martini por
cerveja, depois por vodca, aguardente, tudo o que surgiu na mesa. Então eu vi o
olhar mais triste que já havia visto nela, até então.
Meus dedos
dormiram. Ele me observou agitá-los, um a um. E seus olhos continuaram em mim
quando deixei cair o braço ao lado do corpo, vencida pelo formigamento. E mesmo
quando recostei a cabeça no espaldar da cadeira e fechei os olhos, num pretenso
cochilo, seu olhar elétrico não me abandonou.
— Qual o seu problema? —
perguntei, evitando olhá-lo.
— Nenhum. Só estou te olhando. Não
posso?
— Se você tiver algum motivo forte,
talvez.
— Vai controlar pra onde eu olho,
agora?
— Escuta – fechei os olhos num
suspiro demorado, minha cabeça rodava. – Por que você não vai divertir as
outras pessoas da festa? Como costuma fazer.
Na defensiva. Eu ri. Ela vestia uma blusa diáfana,
de tecido fino, pela qual eu podia entrever uma das alças do sutiã caída sobre seu ombro. Resisti ao impulso de endireitá-la porque, para isso, precisaria
roçar os braços no colo dela – o colo branco que estava à mostra – e não, não
poderia fazê-lo, em nome da amizade e dos bons costumes. Eu gostava dela, mas
não estava apaixonado.
— Porque todos parecem bem. Porque todos estão
focados em uma bebida, apenas. Estão rindo e cantando, mas você não está —
respondi. Ela repetiu o gesto que sempre me forçava a lembrar da tal distância
segura – afastou do rosto aquela basta cabeleira cacheada. Impedi meus olhos de
escorregarem para o seu colo exposto.
— O que importa eu estar bem ou não? — ela
respondeu, azeda.
— O que importa
eu estar bem ou não? — invadiu-me de palavras e olhares, aquilo que me
irritava. Ele sabia. Mas especialmente hoje, irritava-me mais que o normal.
Irritava-me seu cabelo liso que lhe cobria os olhos quando abaixava a cabeça,
irritava-me quando estalava os dedos um a um, irritava-me o castanho forte de
seus olhos e sua barba cuidadosamente deixada por fazer. Meus olhos pesaram
ainda mais.
— Estou cansada —
mal me interessou sua resposta. Deitei a cabeça em seu ombro.
Céus, ela estava tão bêbada. Deitou a cabeça em meu
ombro e eu pude sentir o volume de seus cachos comprimidos contra meu pescoço.
Tinham cheiro de vodca misturado a algo doce, não sei bem o quê – nasci com o
olfato precário. Meu forte sempre foi a pele. A dela, gelada, contrastava com a
minha, eu, quente do álcool e da fumaça dos cigarros que vinham do canto mais
escuro do bar. O colo, fatalmente próximo. Desviei os olhos da curva dos seios
que se pronunciou de leve quando ela envolveu o corpo com os braços.
— Você está fria.
—
Eu estou morrendo — falou baixinho num tom sarcástico e riu, levantando a
cabeça, olhando-me de baixo. Um calafrio estranho subiu pela minha coluna até
minha nuca. Ela se pôs a rir baixinho, depois se envolveu num riso
descontrolado, deitando-se em meu colo.
As pessoas nos olhavam.
Abraçou-me.
Eu senti seu
coração martelando dolorosamente a caixa torácica. Meu batom vermelho sujou sua
camisa quando virei a cabeça, na altura de seu umbigo. E o olhar dele não me
abandonou por um segundo sequer. Aquilo me divertia, ver cada um dos seus
músculos retesar-se, ver a força que ele fazia para manter os olhos nos meus e
não em alguma outra parte do meu corpo que estivesse exposta demais.
— Eu não te amo
— sussurrei.
— Eu não te amo — e gargalhei o mais mortalmente que
pude, olhando em seus olhos de café. Estava bêbada. — Você está bêbada e as
pessoas estão olhando. Venha — envolvi
seus braços em meus ombros e a segurei no colo, levantando-a. Gostaria de ter
rebatido, mas um eu-não-te-amo engasgou na garganta e eu o engoli com saliva,
desceu feito vodca pura. Levei-a para o carro e a deitei no banco de trás.
— Vou te levar pra casa.
Fiz menção de me levantar, mas ela me envolveu pelo
pescoço antes que eu pudesse pensar.
— Nós não nos amamos — ela disse devagar, com aquele
jeito arrastado dos bêbados.
Era verdade, não nos amávamos. A cabeça dela não
estava ali, comigo. Eu não estava apaixonado, mas por alguma razão aquele amor
ausente me tinha gosto de cerveja barata. Eu não a amava porque não a via como
a mulher que ela era, não me atinha às curvas de seus quadris nem aos seios que
só de olhar eu tinha certeza que me encheriam a mão. Não, eu gostava dela. Mas
não estava apaixonado.
— Nós não nos amamos —
repeti, e de repente não me irritavam mais seus olhos tão
próximos aos meus. Não me irritava mais o fato de que costumava pensar mais que
agir. Não me irritava mais que se importasse comigo.
Eu o via
debruçado sobre mim, resistindo ao meu abraço. Conseguia ver seu peito pelos
primeiros botões abertos da blusa branca. Moreno. Seus cabelos tocavam-me os
olhos. Beijei-o. Beijou-me de volta. Meus dedos dormiram. Ele me observou
agitá-los, um a um. Seus olhos continuaram em mim quando deixei cair o braço ao
lado do corpo, vencida pelo formigamento. E mesmo quando recostei a cabeça no
estofado do banco do carro, fechei os olhos e adormeci, seu olhar não me
abandonou.