segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Whistle for the Choir

Não havia ninguém na rua, além do passado. Ninguém, além dos fantasmas bêbados dos erros alheios. Ninguém, afora ele mesmo, alma atormentada procurando um bom lugar, o mais discreto possível, para morrer... Ou para oferecer sua vida aos espectros errantes e trôpegos de seus antecessores.

Ninguém, além dela.

Mas ela, somente ele podia ver, tão sombria quanto os seres translúcidos que chamavam de lar aquele recanto esquecido da cidade. Ela o assombrava mais que seus ébrios amigos fantasmas. A eles, já estava habituado; era quase uma distração assisti-los enquanto gemiam inconformados pelo que poderia ter sido, aquela hipótese congelada pela morte. Mas a ela, ele não podia se acostumar.

A ela, nunca.

Ele não saberia precisar o que nela era pior. Sempre chegava sozinha, altiva, e tudo ao redor parecia entender e aceitar o quão superior ela era. Sim, o mundo encolhia à sua passagem, e ele não tinha opção a não ser imitar a submissão. Diminuído, sua única ação era observá-la enquanto ela, simplesmente, era.

Até que ela aproximou-se dele.

Ela não disse nada, a princípio. Em sua primeira visita, apenas deixou seus olhos estreitos percorrerem-no como quem avalia. Dois minutos sob aquele olhar fosco, que a nada deixava fugir ou transparecer, e ele viu sua liberdade escapar-lhe por entre os dedos. Já não pertencia a si mesmo. Era dela, e só dela.

Há muito ela já havia ido embora quando o sono finalmente deu as caras e, timidamente, forçou seus olhos a se fecharem. Ele podia jurar ter visto o sorriso irônico do deus do sono, antes que o cansaço finalmente o subjugasse. “Terás lindos sonhos esta noite, pobre mortal. Mas, no seu lugar, eu não desejaria acordar nunca mais”.

Sonhou com ela.

Ao despertar, ele maldisse a manhã, maldisse o sol e maldisse tudo o que não fosse ela. Errou pela cidade até que a noite se impôs. Voltou, acuado, ao seu covil, esperando-a e temendo-a ao mesmo tempo.

E ela veio.

Sentou-se ao lado dele e, por um momento, ele sentiu que a vida não era de todo má, ou tinha a obrigação de não ser. Ela existia, e se ela existia, viver por ela era lei. Não importava se tudo o que ela tinha a oferecer era um olhar condescendente que o esmiuçava e o poupava de confessar o inconfessável.

Ela sabia cada pormenor. Ela conhecia sua impotência diante dela. E ela fazia disso seu instrumento de tortura não declarada.

Veio o tempo.

Os fantasmas já não o incomodavam mais. Transparentes, fundiam-se à paisagem e ali permaneciam, mero acessório das culpas não purgadas que ele simplesmente havia desaprendido a temer. Ele não mais se perguntava qual daqueles equívocos desencarnados seria o seu assassino. Ninguém mais tinha o direito sobre a sua vida.

Só ela.

6 comentários:

Júlio Arantes disse...

como meu talento de cronista é irrisório, vou apelar pra quem o tem, ainda que em outra vertente artística...

Essa noite não
Lobão

A cidade enlouquece sonhos tortos
Na verdade nada é o que parece ser
As pessoas enlouquecem calmamente
Viciosamente, sem prazer

As cortinas transparentes não revelam
O que é solitude, o que é solidão
Um desejo violento bate sem querer
Pânico, vertigem, obsessão

Tá sozinha, tá sem onda, tá com medo
Seus fantasmas, seu enredo, seu destino
Toda noite uma imagem diferente
Consciente, inconsciente, desatino

A maior expressão da angústia
Pode ser a depressão
Algo que você pressente
Indefinível
Mas não tente se matar
Pelo menos essa noite não

Rafa disse...

Isso ficou lindo. *-*

(E não reclame que foi um comentário curto. Não tenho muitas outras palavras pra usar...)

Uiberon disse...

Well... It blows my mind away... =o
Delicado, subjetivo, perfeito.

Marco Fischer disse...

"Dai vossos corações, mas não para que o outro os guarde. Pois apenas a mão da Vida pode conter vossos corações."

Encantador e triste como uma tarde de chuva. Encantador por ter sido escrito por uma mente tão sensível e delicada. Triste por me fazer lembrar de minhas próprias caminhadas noturnas.

Mas fantasmas são apenas fantasmas.

Anônimo disse...

Apenas me resta render-me ao talento. Parabéns pelo texto!

Passarei aqui mais vezes para aprender um pouco e vivenciar sua sensibilidade.

Anônimo disse...

ultimamente tenho ficado triste quando faltam objetivos. isso de ser blasé. tenho minhas fases, mas agora nem posso pensar nisso. não podia. foi involuntária a volta dos pensamentos com a leitura do texto.

gostei muito do começo e do fim, mas não senti a mesma fagulha no meio.

no mais, gosto das suas palavras. =D