Você tem uma pendência? Um
assunto mal resolvido, não tão importante, mas que cutuca o fundo do seu
cérebro de tempos em tempos, te lembrando de que ainda existe e que ei, não
pretende parar de te atormentar até que você tire a questão a limpo de vez?
Incômodo e inofensivo, feito um cisco no olho?
Eu tenho uma. E olha, não
sei por quê, não sei qual é o meu problema. O salário que cai na conta ao fim
de cada mês paga todas as despesas e paga ainda mais algumas cervejas. A tal
solidão não me atormenta mais, uma moça bonita sempre atende as minhas ligações
e diz sim aos meus convites para o cinema, para o chope de depois e a transa da
madrugada. Acho que as pessoas chamam isso de namoro.
E isso acalma um homem,
dizem. Isso é o que o faz recolher o time, fechar a porta, apagar as luzes e se
dar por satisfeito, muito satisfeito, no nível de suspiros risonhos toda noite,
antes de dormir. Você pode dizer que eu sou um homem quieto.
Mas há ela.
Ela remanesce, como um eco
do não feito no passado. Não é que ela esteja diferente, embora me pareça
diferente, a cada rara vez que a gente se encontra. Mas ela remanesce. Ali, na
minha frente, é quase um grito do passado, me jogando na face as decisões que
não tomei.
Como nos velhos tempos,
ela ainda sorri quando me vê e ri das minhas piadas, não sei se por compaixão
ou por seu senso de humor pouco exigente. Tudo está igual. E ao mesmo tempo,
tudo está melhor, maior. É como se aquela figura me esfregasse na cara o que eu
perdi. Você entende isso? Ela fica cada vez mais atraente pra massacrar em mim o
fato de que a deixei escapar.
E não é que eu a tenha
deixado escapar, pelo amor de Deus! Aconteceu algo, foi bom, eu não sabia como
encerrar, não queria encerrar, mas também estava pela metade e ela decidiu por
mim. Sumiu por uns tempos, voltou quando as coisas estavam calmas. Eu,
definitivamente, estava calmo... Mas perto dela, nem um pouco.
Pode me chamar de porco.
De canalha. Ela mesma o faz, quando pergunto “é coisa da minha cabeça ou você
está ainda mais gostosa?”. Me devolve aquele sorriso meio surpreso e rebate
“Depende, de que cabeça estamos falando?”. E ri. Aquele sorriso de
não-vai-acontecer-de-novo. Ou de tome-vergonha-na-cara. Ou de quem não me leva
a sério. E não deveria, olha de quem estamos falando.
Mas ela remanesce. O
sorriso é o mesmo, a simpatia de sempre, as piadas ruins ainda por aí... Mas
não sei o que essa menina tem que me deixa fora de mim. E eu desconfio que
nunca de fato saberei o que é viver sem essa tal pendência. A não ser que as
coincidências nos coloquem no lugar certo e na hora certa.
Ela remanesce, incômoda
feito um espinho do pé. Uma pedrinha no meu sapato. Bagunçando a tal paz de que
eu me julgava um afortunado possuidor.
E há quem me aconselhe que
deixe tudo isso de lado e viva minha vida. É... tem gente que não sabe que a
vingança não é o único prato que se come frio.