Para ler ouvindo:
— É amor.
— É culpa.
— É tesão.
— É falta.
— E o que nós faremos?
— O que fizemos a vida toda.
Ele roubou o cigarro dos lábios dela, deu uma tragada, aspirou fundo a
nicotina e o pousou no cinzeiro enquanto soltava a fumaça devagar. Ela apenas o
observou. Desceu os olhos pelas suas costas, pelas cicatrizes lívidas que
ladeavam a coluna bem pronunciada sob a pele. Ele apoiou o peso nos dois braços
e alongou-se.
— Agiremos como adultos?
— Falaremos sobre o tempo...
— As pessoas...
— O trabalho...
— Uma média aritmética de tudo o que for
banal e menos interessante do que o que somos hoje.
— Algo assim.
Ela ainda ressonava sobre os lençóis em desordem. Ele encarava o dia
cinza pela janela panorâmica, sentado na cama. O cigarro ainda queimava,
esquecido sobre o cinzeiro.
— As coisas não precisam ser assim.
— As coisas não precisam ser.
— Você foge.
— Você luta.
— A fuga é covarde.
— A luta é estúpida.
Ele enterrou o rosto nas mãos, ela continuou a olhá-lo. O relógio do
videocassete piscava as 12h que há tempos já não eram, em letreiro azul. A
cidade lá fora parecia estagnada. O tempo parecia estagnado. As horas certas
passavam despercebidas.
— Por que você não arrisca?
— Por que você não me solta?
— Por que você não me cega?
— Por que você não me erra?
— É quase um poema...
Ele escorregou as mãos para o queixo. Olhou-a pelo canto dos olhos.
Ela ainda o observava. Suspirou. Suspiraram. Ele deitou-se ao lado dela, envolveu-a
nos braços. Ela prendeu a respiração, imóvel. Ele estreitou o abraço. Tinha
cheiro de cigarro e lavanda. Permaneceram mudos, ele, de olhos fechados, ela,
com os olhos vidrados, encarando o teto, desejando estar em outro lugar.
— Vamos parecer dois idiotas.
— Eu vou rir.
— Eu vou saber do que você vai estar
rindo.
— Vou tentar não pensar nisso.
— Eu vou estar pensando em você.
— Eu sei...
O despertador dela tocou. A tensão que os mantinha imóveis se quebrou,
ela estendeu a mão direita para silenciar o aparelho. Alguns segundos de mais silêncio.
Ela se sentou na cama. Ele cobriu os olhos com um dos braços e chorou.
— Nós não precisamos nos amar pra fazer
isso.
— Mas parece errado não amar depois de
fazê-lo.
— A decisão entre amar e não amar cabe
unicamente a nós.
— E você acha que é possível escolher
entre um e outro?
— Eu acredito nisso piamente. Você não?
— Deixa de ser uma escolha quando as
coisas caminham bem.
— Deixa de ser uma escolha para ser...?
— Uma obrigação.
— Você não tem a obrigação de me amar.
— Nem você.
— Mas e se eu quiser?
— Você não quer.
— Tem razão, eu não quero.
Ela o olhou por mais algum tempo antes de começar a se vestir. Apanhou
as roupas espalhadas pelo chão, enfiou algumas delas de qualquer jeito em sua
bolsa de náilon preto. Passou as mãos pelos cabelos, desamassou a blusa que
vestia e o olhou novamente. As lágrimas manchavam a pele morena. Com um último
suspiro, ela abriu a porta e saiu.
— E quando eu falar sobre o clima...
— Eu vou estar pensando no quanto você
se arrepia quando eu te mordo...
— E quando eu disser que vai chover...
— Eu vou me lembrar do quanto suas mãos
são geladas...
— E quando eu disser que nunca mais
faremos isso...
— Eu vou pensar no quanto quero fazer
isso de novo.
Ela andou por alguns quarteirões, sentindo o sol arder na pele, a
tristeza estampada nos olhos franzidos. E lá se ia uma grande história. Poderia
ter sido muita coisa, mas não era amor e aquilo doía.