Seu primeiro pensamento foi o de que
todas as pessoas do mundo estavam ali. De onde ele vinha, era comum perder-se
num mar indistinto de gente sem rosto, mas a coisa mudava de figura quando a
multidão se concentrava num lugar como aquele, em que todos os cantos pareciam
explodir de gente fantasiada e trajando todo tipo de adereços coloridos.
Por muito
tempo, ele observou maravilhado aquele povo perdido num turbilhão de alegria.
Eram ruas e ruelas tomadas pela festa; a multidão era tamanha que era difícil
transitar entre um pólo e outro. Ele achou incrível como aquela gente parecia
saber tanto sobre si mesma, saber do todo contido nas canções que eles entoavam
de cor, as vozes cada vez mais vibrantes e misturadas num único tom. Não que
ele estivesse desacostumado à folia do Carnaval – sua cidade era uma das mais
disputadas pelos turistas e lentes do mundo àquela época do ano. Mas a
impressão que ele tinha, parado ali, dentre tanta gente, é que aquela festa sim
era repleta de verdade.
Viera
sozinho. Os amigos e a família não ousaram trocar seu Carnaval de todos os anos
pelo que desconheciam, apesar da boa fama. Compraram seus camarotes para a
Avenida e lhe desejaram boas festas.
A
nossa vida é um carnaval,
A
gente brinca, escondendo a dor
Sozinho
entre tantos desconhecidos que encontravam mais do que nunca sua identidade
naquela folia, a folia de Momo, ele se perguntou se em algum momento faria
parte daquilo ou se prosseguiria os quatro dias com os mesmos olhos
maravilhados de espectador. Era uma perspectiva bastante solitária, ainda mais
diante da alegria e do hedonismo que todos ali ostentavam tão verdadeiramente.
E
a fantasia do meu ideal
É
você, meu amor...
Então ele a viu. Vários metros adiante,
quase invisível entre tantos foliões, uma Colombina de vestido preto-e-branco
parecia entoar com mais força ainda o frevo que se repetia em todos os recantos
daquele lugar antigo. Enfeites desciam-lhe pelo cabelo escuro, a pele morena
contrastando com o branco do vestido. Uma máscara negra cobria-lhe o rosto, mas
nem isso o impediu de perceber o tom malicioso de verde que tinham os olhos da
moça. Ela cantava como se o Carnaval fosse só dela.
Sopraram
cinzas no meu coração,
Tocou
o silêncio em todos os clarins,
Caiu
a máscara da ilusão,
Dos
Pierrôs e Arlequins...
A partir daí, se o tempo se arrastou
nas costas daquela tarde ensolarada ou se passou veloz, ele não percebeu. Teria
passado o dia inteiro observando a pequena soberana do Carnaval, se pudesse. A
Colombina agitava os braços e fechava os olhos como se recebesse pessoalmente a
bênção de Momo. O êxtase era tanto que, mesmo ele, forasteiro naquelas terras,
começou a murmurar as canções de Carnaval como se as conhecesse há tempos.
O crepúsculo já tingia o céu de laranja
quando ela percebeu a ele e seu olhar insistente. De início, lançou-lhe um
olhar fugaz, de quem nota que está sendo observado, e passou a repeti-lo, de
tempos em tempos. A persistência do rapaz a fez rir e logo, sem que ele percebesse
como, ela estava diante dele, sorrindo, tentando sobrepor a voz à da multidão:
— Desse jeito vai perder a festa, visse?
— Quê? — ele arregalou os olhos claros,
confuso pelo sotaque da moça. Ela riu mais uma vez.
— Você vai perder a festa se continuar
olhando pra mim!
Ele baixou os olhos, envergonhado,
rindo também.
— Vem de onde? — ela se aproximou, o
corpo se mexendo no ritmo da música.
— Eu sou de São Paulo... Você é daqui
mesmo, não é?
— Nascida e criada! Meu, tu precisa
tomar um solzinho... — ela riu, imitando-lhe o sotaque. Ele riu também.
E a partir daí, ele se esqueceu da
possibilidade de passar os quatro dias da festa como um mero espectador. Havia
uma chance, mesmo remota, de integrar aquela multidão, que pareceu ainda mais una quando uma chuva fina começou a
cair. Havia uma chance nos olhos da moça. E ela, sorridente, confirmou essas
chances quando, num palco distante, alguém fez um gesto, a orquestra o seguiu,
o publicou vibrou as mesmas ondas sonoras:
— Eu
vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é Carnaval... — ela cantou. E
o resto foi silêncio e o gosto de sal dos lábios da moça. Ele agora era o
Carnaval, fundido a ela, banhado por aquela chuva gelada, sob o céu diferente
daquela cidade.
Vê,
Colombinas azuis a sorrir, laiá
Vê,
serpentinas na luz reluzir,
Vê
os confetes do pranto no olhar
Desses
palhaços dançando no ar...
E, mais uma vez, o tempo se desprendeu
das medições precisas, definido apenas pelo fluxo de emoções da multidão e da
Colombina de olhos esverdeados. A noite já caía e a orquestra não dava o mínimo
sinal de cansaço. Ele dançava, a Colombina com os braços ao redor do seu
pescoço numa intimidade tão grande que se desfaria a qualquer momento.
Assim como veio, acabou.
Ele se descuidou por um minuto apenas,
no meio da madrugada, e quando deu por si, a Colombina já ia-se embora no meio
da multidão. Ele só pôde vislumbrar os enfeites do cabelo dela, cada vez mais
distantes, e um último olhar, fugaz como o primeiro – uma faísca verde nos
borrões coloridos das fantasias. Com um aceno, ela sumiu.
Vê,
multidão colorida a gritar, lará
Vê,
turbilhão dessa vida passar,
Vê
os delírios dos gritos de amor
Nessa
orgia de som e de dor...
Ele entendeu o porquê de chamarem
aquele dia de quarta-feira ingrata
quando caminhou pela praça vazia, dias depois, com apenas vestígios da folia
que a havia tomado por dias e dias ininterruptos. Havia vindo ali pelos quatro
dias, esperando encontrar novamente a pequena Colombina, e ainda mais aquela
vez, a última, quando a folia já havia dado lugar ao retorno à vida real.
Talvez fosse melhor assim, ele pensou.
Talvez fosse melhor não encontrá-la na quarta-feira de cinzas, em que ela já
não seria mais a Colombina e ele não passaria de um estranho naquela terra que
ele admirava, respeitava, mas da qual não fazia parte.
Talvez fosse melhor, mesmo.
Mas ele não pôde deixar de pensar,
enquanto via a cidade encolher, da janela do avião que o levava de volta à sua
selva de pedra, que aquele havia sido o melhor Carnaval de sua vida.