É que ele não gosta de sentir. Começa tudo achando que não conseguirá terminar. Duvida da própria capacidade de cumprir promessas. Detesta demonstrar fraquezas, ainda que saiba ser dono de uma bela e humana coleção delas. Teme a solidão e finge amá-la. Tem os objetivos muito bem traçados na cabeça, mas é seduzido facilmente por muitos outros e esquece os antigos na memória. Não é facilmente impressionável e por vezes flagra-se num mudo desejo de ser mais ingênuo, mais crédulo. Desgosta de coisas demais pra idade. Detesta magoar pessoas, age sempre com um cuidado milimétrico para não fazê-lo e ainda assim, o faz. Tem medos e não sabe como encará-los. Foge do que o incomoda. Defende veementemente suas crenças e rebate, com a mesma veemência, suas descrenças. Idealista até onde a lei faculta. Não acredita em si mesmo. Ama mais pessoas do que gosta de admitir. Não fala de sentimentos. Não ouve música romântica. Nega a própria sensibilidade. Tenta parecer sisudo, mas é traído pelo carinho que carrega nas mãos. Prefere fingir que não sabe dos sentimentos que provoca. Só chora escondido. Gosta da escuridão. Tem pavor dos próprios erros e prefere fingir que não os cometeu. Instável. Imprudente. Imaturo. Inconstante. Tem medo de assumir riscos. Não sustenta certezas. Quebra mais corações do que gosta de admitir. Cobre-se de uma modéstia que não tem. Finge ser o que não é, se assim puder conquistar a quem quer. Finge o quanto pode e o quanto não pode. Esconde-se sob uma armadura frágil e prefere permanecer alheio ao mundo real. Inconseqüente. Alheio. Conveniente. Intempestivo. Dependente. Frio. Insensível. Covarde. Relutante.
Ele é tudo isso, talvez seja mais, talvez finja mais. Ele é tudo isso e ao seu pescoço deveria estar amarrada a corda-sentença, culpa, irrestrita, indubitável...
Por alguma razão, não consigo encerrar este julgamento da forma que a razão exige. Algo nos olhos dele implora anistia, me revela um pouco de tudo o que, embora eu negue, eu quis ser. Vejo em tudo uma rebeldia que me açoita, um desprendimento que quis ter com todos os errantes que ousaram incluir-me em seu itinerário. De uma forma de outra, ele carrega tanto de mim quanto eu dele.
Talvez eu tenha errado. Talvez não seja ele o réu deste júri. Talvez ele seja eu. Ele foi o que eu permiti que fosse. E pelo poder que me foi concedido, eu me declaro...
(Por força da necessidade: este texto não se refere, sob forma alguma, a algum personagem da vida 'real', muito menos o eu-lírico. Tratam-se de metáforas, fictícias, e qualquer semelhança é mera coincidência).