Conheceram-se numa dessas espeluncas que são a única opção quando se quer beber às três e meia da manhã e toda a cidade dorme, ou finge dormir. Ela tomava a pior cerveja que existia, só pela necessidade de álcool nas veias que o expediente do dia lhe deixara no juízo. Ele, na mesa ao lado, observava o movimento da rua com olhos desinteressados, o queixo apoiado numa das mãos. Ambos sozinhos. Ela, com uma extroversão quase de inteira responsabilidade do álcool, achou-o lindo – cabelos compridos, olhar grave, barba rala – e tentou puxar assunto numa fala meio trôpega.
“Ei, cara. É uma noite bonita demais pra beber sozinho. Por que não juntamos as mesas?”, convidou.
Ele riu por alguns segundos e respondeu “por que não?” numa voz de baixo-barítono.
Horas mais tarde, a moça semi-consciente estava no banco traseiro do rapaz desconhecido, tropeçando na própria língua ao tentar explicar o endereço. E ele, ainda e incrivelmente sóbrio – mesmo depois de alguns muitos exemplares da cerveja barata – levou-a para casa, serviu-lhe de apoio para subir os degraus da escada e deixou o número de telefone num post-it rosa berrante que encontrou no criado-mudo da sala.
Quando ela acordou, muitos detalhes da noite anterior lhe escapavam da memória, substituídos por uma dor de cabeça infernal. A não ser, é claro, o cara incrivelmente lindo que ela conhecera no bar. Que, no post-it cor de rosa, tinha nome e telefone. Ligar ou não ligar foi a questão da meia hora seguinte. Buscar pretextos, mais alguns minutos. Criar coragem, o dia inteiro. Até que ela admitiu que não tinha nada a perder e discou o número.
— Você não lembra de mim — ela disse, à guisa de cumprimento.
— Claro que eu lembro. Embora sua dicção esteja bem melhor agora — ele riu e ela imediatamente esqueceu-se do nervosismo. — Achei que você não ia mais ligar.
— Fiquei com medo de ter cometido alguma atrocidade ontem à noite. Eu cometi?
— Ainda não... Mas não me incomodaria em ser sua vítima se você for tão divertida sóbria quanto bêbada.
Por três noites seguidas, eles foram companheiros de copo naquela mesma espelunca, que passara de única opção a lugar simbólico. Somente na quarta noite veio o beijo, e passaram a ser companheiros também de cama, num motel cujas condições eram superiores, e muito, ao barzinho de esquina. A partir da sexta noite eles decidiram que o motel era impessoal demais. Sabiam sobre o outro nome, telefone, cor e livro favoritos. “Meu quarto e sala ou sua casa?”, “Melhor o teu quarto e sala, eu moro com gente demais”. E o primeiro mês surgiu quase despercebido. Um belo dia, a escova de dentes dele estava no banheiro dela e algumas reedições do The Who, na estante.
Foram meses incríveis. Não os mais românticos, mas os mais pitorescos da vida de ambos. Estar com ele era a cada dia uma surpresa agradável, fosse na forma de um filme mudo que ele desenterrava num dos sebos da cidade, num vinho quente surrupiado da adega de algum amigo, nos dias que ele chegava da rua mais ávido que de costume e a despia sem dizer nada, como se fazer amor com ela fosse urgência máxima.
Até que ela deu-se conta de que, talvez, o amasse. Foi n’algum momento entre o sexto e o sétimo mês, em que a noite estava mais escura e quieta que o normal, – esporadicamente, as luzes de algum carro lá fora riscavam o teto e só – que ela percebeu. Porque eles se amaram em silêncio. Não da forma selvagem de antes, mas com os olhos resolutos, desejos expressos, sintonia fina. Ele adormeceu poucos minutos depois, enlaçando-a pela cintura, e ela pensou, olhando o teto e seus ocasionais flashes de luz, como seria não tê-lo mais. A dor foi quase física, aguda e implacável. A palavra era uma só: vazio.
E se ela houvesse dito ‘eu te amo’ quando sentiu vontade?
Não havia. E não se arrependia do não-feito. Havia aprendido que dizer ‘eu te amo’ é o tipo de coisa que pode estragar tudo. Mas vez em quando uma curiosidade impertinente a assaltava, indagando qual seria a conseqüência daquelas três palavras desgastadas.
“Qual seria a reação dele?”, ela se perguntava nas noites de nada pra fazer. Não fazia idéia. Não que esperasse ouvir um ‘eu também’. Sabia que ele gostava dela, não havia prova maior que a noite em claro na Emergência, em que ela se contorcera de dor por conta de algum camarão mal preparado destes bares noturnos e ele, desorientado, só conseguiu olhar palidamente para o tubo de soro e segurar a mão dela. “Você é o namorado?”, um dos médicos plantonistas havia perguntado. “Sim”, ele respondera, resoluto.
O problema era ele ser misterioso demais. Não do tipo esquivo, nem rude. Ele apenas não dizia nada e ela precisava de palavras – nada lhe era concreto se não externado de forma clara e audível. Como não bastasse, os olhos do sujeito eram velados. Feito uma janela de vidro fosco – ela nunca obtinha mais que um contorno difuso do que existia neles. Misterioso, complicada. Era de admirar que eles houvessem passado tanto tempo dividindo cama, almoço, pia e jantar – ele até sugeriu que dividissem a escova de dentes, alegando que por suas bocas passavam as mesmas coisas (inclusive seus próprios fluidos corporais), mas a careta horrorizada dela o fez ter uma crise de riso e sinalizar a sugestão como brincadeira.
Enfim, ele foi embora. Sem alarde, sem muitas palavras.
Ela deu-se conta de que o amava e passou a observá-lo dormir, noite após noite, decorando cada detalhe de seu corpo, cada cicatriz, cada imperfeição. Talvez houvesse sido um presságio, um surto de clarividência, algo assim. Tantas crenças haviam passado a permear seu ceticismo depois dele. Destino, coincidências, paraísos astrais. Não podia ser mero acaso.
Ainda mais porque ele partiu daquele jeito mudo. Talvez em resposta à auto-censura que ela murmurava para si todas as noites, vendo-o adormecido. “Covarde”, ela dizia baixinho.
Ele se foi e tudo o que deixou foi uma frase no mesmo post-it cor de rosa do início. Você é muito mais corajosa que eu, ele escrevera, numa caligrafia apressada, porém firme. As reedições do The Who não estavam mais na estante, tampouco a escova de dentes gasta, no banheiro. Havia sobrado uma camisa listrada, de mangas compridas e impregnada com o cheiro dele, uma colônia inglesa cujo nome ela nunca soube. Parecia até proposital, partir e deixar o rastro para trás.
Ele a chamou de corajosa, ela nunca soube bem o porquê. Não chorou, não precisou recolher-se ao luto. Na verdade, ele havia sido tão inacreditável que ela chegou a duvidar da sua existência. Talvez fosse criação de sua mente para preencher aquela vidinha insípida. Quem sabe?
Ele foi embora e só levou consigo as respostas. A ela, restaram as interrogações que ainda a inquietam, de raro em raro. Os porquês. E a reação ao ‘eu te amo’ que ela nunca chegara a dizer.