quarta-feira, 15 de junho de 2011

Acasos e botequins

Conheceram-se numa dessas espeluncas que são a única opção quando se quer beber às três e meia da manhã e toda a cidade dorme, ou finge dormir. Ela tomava a pior cerveja que existia, só pela necessidade de álcool nas veias que o expediente do dia lhe deixara no juízo. Ele, na mesa ao lado, observava o movimento da rua com olhos desinteressados, o queixo apoiado numa das mãos. Ambos sozinhos. Ela, com uma extroversão quase de inteira responsabilidade do álcool, achou-o lindo – cabelos compridos, olhar grave, barba rala – e tentou puxar assunto numa fala meio trôpega.

“Ei, cara. É uma noite bonita demais pra beber sozinho. Por que não juntamos as mesas?”, convidou.

Ele riu por alguns segundos e respondeu “por que não?” numa voz de baixo-barítono.

Horas mais tarde, a moça semi-consciente estava no banco traseiro do rapaz desconhecido, tropeçando na própria língua ao tentar explicar o endereço. E ele, ainda e incrivelmente sóbrio – mesmo depois de alguns muitos exemplares da cerveja barata – levou-a para casa, serviu-lhe de apoio para subir os degraus da escada e deixou o número de telefone num post-it rosa berrante que encontrou no criado-mudo da sala.

Quando ela acordou, muitos detalhes da noite anterior lhe escapavam da memória, substituídos por uma dor de cabeça infernal. A não ser, é claro, o cara incrivelmente lindo que ela conhecera no bar. Que, no post-it cor de rosa, tinha nome e telefone. Ligar ou não ligar foi a questão da meia hora seguinte. Buscar pretextos, mais alguns minutos. Criar coragem, o dia inteiro. Até que ela admitiu que não tinha nada a perder e discou o número.

— Você não lembra de mim — ela disse, à guisa de cumprimento.

— Claro que eu lembro. Embora sua dicção esteja bem melhor agora — ele riu e ela imediatamente esqueceu-se do nervosismo. — Achei que você não ia mais ligar.

— Fiquei com medo de ter cometido alguma atrocidade ontem à noite. Eu cometi?

— Ainda não... Mas não me incomodaria em ser sua vítima se você for tão divertida sóbria quanto bêbada.

Por três noites seguidas, eles foram companheiros de copo naquela mesma espelunca, que passara de única opção a lugar simbólico. Somente na quarta noite veio o beijo, e passaram a ser companheiros também de cama, num motel cujas condições eram superiores, e muito, ao barzinho de esquina. A partir da sexta noite eles decidiram que o motel era impessoal demais. Sabiam sobre o outro nome, telefone, cor e livro favoritos. “Meu quarto e sala ou sua casa?”, “Melhor o teu quarto e sala, eu moro com gente demais”. E o primeiro mês surgiu quase despercebido. Um belo dia, a escova de dentes dele estava no banheiro dela e algumas reedições do The Who, na estante.

Foram meses incríveis. Não os mais românticos, mas os mais pitorescos da vida de ambos. Estar com ele era a cada dia uma surpresa agradável, fosse na forma de um filme mudo que ele desenterrava num dos sebos da cidade, num vinho quente surrupiado da adega de algum amigo, nos dias que ele chegava da rua mais ávido que de costume e a despia sem dizer nada, como se fazer amor com ela fosse urgência máxima.

Até que ela deu-se conta de que, talvez, o amasse. Foi n’algum momento entre o sexto e o sétimo mês, em que a noite estava mais escura e quieta que o normal, – esporadicamente, as luzes de algum carro lá fora riscavam o teto e só – que ela percebeu. Porque eles se amaram em silêncio. Não da forma selvagem de antes, mas com os olhos resolutos, desejos expressos, sintonia fina. Ele adormeceu poucos minutos depois, enlaçando-a pela cintura, e ela pensou, olhando o teto e seus ocasionais flashes de luz, como seria não tê-lo mais. A dor foi quase física, aguda e implacável. A palavra era uma só: vazio.

E se ela houvesse dito ‘eu te amo’ quando sentiu vontade?

Não havia. E não se arrependia do não-feito. Havia aprendido que dizer ‘eu te amo’ é o tipo de coisa que pode estragar tudo. Mas vez em quando uma curiosidade impertinente a assaltava, indagando qual seria a conseqüência daquelas três palavras desgastadas.

“Qual seria a reação dele?”, ela se perguntava nas noites de nada pra fazer. Não fazia idéia. Não que esperasse ouvir um ‘eu também’. Sabia que ele gostava dela, não havia prova maior que a noite em claro na Emergência, em que ela se contorcera de dor por conta de algum camarão mal preparado destes bares noturnos e ele, desorientado, só conseguiu olhar palidamente para o tubo de soro e segurar a mão dela. “Você é o namorado?”, um dos médicos plantonistas havia perguntado. “Sim”, ele respondera, resoluto.

O problema era ele ser misterioso demais. Não do tipo esquivo, nem rude. Ele apenas não dizia nada e ela precisava de palavras – nada lhe era concreto se não externado de forma clara e audível. Como não bastasse, os olhos do sujeito eram velados. Feito uma janela de vidro fosco – ela nunca obtinha mais que um contorno difuso do que existia neles. Misterioso, complicada. Era de admirar que eles houvessem passado tanto tempo dividindo cama, almoço, pia e jantar – ele até sugeriu que dividissem a escova de dentes, alegando que por suas bocas passavam as mesmas coisas (inclusive seus próprios fluidos corporais), mas a careta horrorizada dela o fez ter uma crise de riso e sinalizar a sugestão como brincadeira.

Enfim, ele foi embora. Sem alarde, sem muitas palavras.

Ela deu-se conta de que o amava e passou a observá-lo dormir, noite após noite, decorando cada detalhe de seu corpo, cada cicatriz, cada imperfeição. Talvez houvesse sido um presságio, um surto de clarividência, algo assim. Tantas crenças haviam passado a permear seu ceticismo depois dele. Destino, coincidências, paraísos astrais. Não podia ser mero acaso.

Ainda mais porque ele partiu daquele jeito mudo. Talvez em resposta à auto-censura que ela murmurava para si todas as noites, vendo-o adormecido. “Covarde”, ela dizia baixinho.

Ele se foi e tudo o que deixou foi uma frase no mesmo post-it cor de rosa do início. Você é muito mais corajosa que eu, ele escrevera, numa caligrafia apressada, porém firme. As reedições do The Who não estavam mais na estante, tampouco a escova de dentes gasta, no banheiro. Havia sobrado uma camisa listrada, de mangas compridas e impregnada com o cheiro dele, uma colônia inglesa cujo nome ela nunca soube. Parecia até proposital, partir e deixar o rastro para trás.

Ele a chamou de corajosa, ela nunca soube bem o porquê. Não chorou, não precisou recolher-se ao luto. Na verdade, ele havia sido tão inacreditável que ela chegou a duvidar da sua existência. Talvez fosse criação de sua mente para preencher aquela vidinha insípida. Quem sabe?

Ele foi embora e só levou consigo as respostas. A ela, restaram as interrogações que ainda a inquietam, de raro em raro. Os porquês. E a reação ao ‘eu te amo’ que ela nunca chegara a dizer.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Inconclusão

Era um corredor longo e negro, margeado do começo ao fim por finas cortinas, também negras, diáfanas e puídas pelo tempo. Pé ante pé, ela caminhou. Não fazia ideia de onde estava ou como havia chegado ali, mas caminhou. As cortinas ondulavam ao sabor da brisa gelada. Para além delas, o nada - os olhos se perdiam na escuridão.

No fim do corredor, algo brilhava. Cônscia da estranheza, do perigo, da ausência de sentido ou coerência, ela prosseguiu, hipnotizada. Algo soprava em seus ouvidos, instigava-a a continuar, a alcançar aquele lume prateado: talvez nele estivessem as respostas para as suas perguntas, mesmo aquelas que sua mente ainda não havia criado.

Seus passos não faziam barulho – ela deslizava pelo silêncio.

Era um espelho. Antigo, bordas rebuscadas, – prata, talvez – maior que ela mesma. A moça encarou seu reflexo pálido por segundo ou dois, antes de perceber o vulto que se aproximava. Paralisada, o coração dolorosamente tentando escapar do peito, ela o viu chegar, pelo espelho. Sentiu sua respiração pesada atrás de si. Encarou seus olhos de vidro, que sustentavam os dela com tanta intensidade que, se fosse possível, ela coraria ao mesmo tempo em que sua tez perdia toda a cor.

Ela o desejou.

Ainda fitando o espelho, ela o viu suspirar, tristemente. Sentiu que ele ia-se embora. Não, ninguém nunca a havia olhado daquela forma! Ela tentou dizer-lhe, com os olhos, mas ele balançou a cabeça, parecendo ainda mais desolado, e deu um passo para trás, em despedida. Ela virou-se, ia persegui-lo, tomá-lo nos braços.

Mas ele não estava em lugar algum.

Estarrecida, ela encarou a escuridão que se perdia no horizonte e voltou o olhar para o espelho. Lá estava ele, em pé atrás dela, derrotado. Parecia indagar ‘entendeu agora?’. Aproximou-se, tentou tocá-la, hesitou – por fim, deu as costas e desapareceu no corredor.

Ela acordou.

Olhou ao redor e suspirou, aliviada: sonho. Fora dormir impressionada com as histórias de fantasmas contadas por seus primos da fazenda e ali estava o resultado. Acendeu a luz, fechou as grandes janelas em arco, conferiu os armários. A julgar pela escuridão lá fora, todos já haviam se recolhido.

Ela recostou a cabeça ao travesseiro e encarou o teto. “Ele foi o primeiro noivo da nossa bisavó”, ecoou a voz do primo mais novo em sua cabeça. “Mas foi encontrado morto, pendurado pelo pescoço numa das árvores da fazenda. Há quem diga que foi assassinato”, prosseguiu o adolescente “já que a família de um coronel das redondezas estava muito interessada em casar o filho com a bisa. Unir as terras, coisa assim”.

Ela ouvira a história à beira do rio, comendo cajus com alguns dos primos e tios. Férias na fazenda. Eles sempre gostavam de assustá-la e até conseguiam, quando ela era mais nova. Os anos vieram, o ceticismo também, mas ficou o pretexto – era só questão de reunirem-se ao redor da fogueira, compartilhando histórias e mantas de lã, olhando as estrelas até que o frio fizesse as vezes de toque de recolher.

Naquele dia, em especial, seu tio dissera, com o olhar saudoso:

— Vocês não deviam contar essa história com esse ar tão leviano, meninos. Vovó nunca se recuperou de verdade da morte do primeiro noivo. Ela vivia com o olhar perdido, sobretudo nos últimos anos de vida...

— Então essa história é real, tio? — ela indagou, chocada.

— Sim, sim. Claro que a parte dos fantasmas é brincadeira boba dos seus primos... Mas esse rapaz, Leonardo, existiu. Aliás — ele olhou-a com um sorriso de saudade nos lábios — você se parece muito com vovó Eulália, sabia?

A moça em preto-e-branco no álbum de fotografias, de fato, parecia-se com ela. Exceto pelo olhar, incompleto, distante – mesmo rodeada de marido, filhos, mesmo que cada foto revelasse razões de sobra para sorrir. “Mas é muito fácil elaborar a felicidade a ser eternizada nos fotogramas”, pensou. Sobretudo antigamente, naquela época ainda perplexa com aquela máquina capaz de congelar momentos.

Naquela tarde, ela caminhara até a pequena capela centenária, no alto de um morro, vigiando toda a fazenda. No cemitério, repousavam gerações. Bisa Eulália dormia num dos túmulos mais recentes, de mármore branco. Num canto mais afastado, à sombra de um carvalho, um túmulo cinzento e solitário encerrava Leonardo, que Eulália, um tio lhe contou, insistira para que fosse enterrado na fazenda. A foto oval revelava um rosto grave, preto e branco, numa expressão de pesar que parecia antever seu destino. “A perfeita expressão para ilustrar a morte”, ela pensou, pousando uma flor branca sobre a sepultura gasta.

Recostada à cabeceira da cama, ela relembrava o dia. Como a história a tocara. Como aquela aura de incompletude rondava toda a fazenda, mesmo quase cem anos depois. Tentou ler um romance de banca de revista que estava no criado-mudo, mas seus pensamentos ainda estavam na história interrompida de sua bisavó.

Até que uma lufada de vento gelado a fez erguer os olhos do livro. A janela em arco, que ela fechara algumas horas atrás, estava aberta. Ela avistou ao longe a capela, o cemitério, o carvalho. Trêmula, percebeu que um lume prateado, o mesmo de seu sonho, emanava da sepultura cinzenta. Levantou-se, vestiu um robe, calçou seus chinelos. Era como no sonho – ela ignorava os porquês, só sabia que precisava ir até lá.

Vaga-lumes pairavam na noite. Ela sabia que ele estaria lá antes de vê-lo, corpóreo, parecendo material e ao mesmo tempo um eco distante – uma memória. Ele mantinha os olhos nela como se nada mais enxergasse. Não era desejo, não era mágoa, não eram ordens, era apenas a constatação.

— Não, Leonardo — ela ouviu-se murmurar — eu não sou ela.

Ele assentiu.

— Me desculpe — ela continuou — eu queria terminar essa história por vocês, eu queria...

Ele sinalizou que ela se calasse. Aproximou-se, um sorriso melancólico nos lábios, mudo. Levou os dedos aos lábios, encostou-os no rosto dela, que nada sentiu, mas imaginou.

— Ela morreu te amando.

Ele sorriu mais uma vez. Permaneceram ali, estáticos, por minuto ou dois, até que ele pareceu reunir toda a coragem que não tinha e, com um gesto, mandou-a embora. Ela balançou a cabeça, negativamente, mas ele tentou tocá-la novamente, como se quisesse fazê-la perceber que não havia nada a ser feito.

Ela entendeu.

Despertou horas mais tarde, sem saber se sonhara ou não. Aos seus pés, uma flor branca repousava.