Não havia ninguém na rua, além do passado. Ninguém, além dos fantasmas bêbados dos erros alheios. Ninguém, afora ele mesmo, alma atormentada procurando um bom lugar, o mais discreto possível, para morrer... Ou para oferecer sua vida aos espectros errantes e trôpegos de seus antecessores.
Ninguém, além dela.
Mas ela, somente ele podia ver, tão sombria quanto os seres translúcidos que chamavam de lar aquele recanto esquecido da cidade. Ela o assombrava mais que seus ébrios amigos fantasmas. A eles, já estava habituado; era quase uma distração assisti-los enquanto gemiam inconformados pelo que poderia ter sido, aquela hipótese congelada pela morte. Mas a ela, ele não podia se acostumar.
A ela, nunca.
Ele não saberia precisar o que nela era pior. Sempre chegava sozinha, altiva, e tudo ao redor parecia entender e aceitar o quão superior ela era. Sim, o mundo encolhia à sua passagem, e ele não tinha opção a não ser imitar a submissão. Diminuído, sua única ação era observá-la enquanto ela, simplesmente, era.
Até que ela aproximou-se dele.
Ela não disse nada, a princípio. Em sua primeira visita, apenas deixou seus olhos estreitos percorrerem-no como quem avalia. Dois minutos sob aquele olhar fosco, que a nada deixava fugir ou transparecer, e ele viu sua liberdade escapar-lhe por entre os dedos. Já não pertencia a si mesmo. Era dela, e só dela.
Há muito ela já havia ido embora quando o sono finalmente deu as caras e, timidamente, forçou seus olhos a se fecharem. Ele podia jurar ter visto o sorriso irônico do deus do sono, antes que o cansaço finalmente o subjugasse. “Terás lindos sonhos esta noite, pobre mortal. Mas, no seu lugar, eu não desejaria acordar nunca mais”.
Sonhou com ela.
Ao despertar, ele maldisse a manhã, maldisse o sol e maldisse tudo o que não fosse ela. Errou pela cidade até que a noite se impôs. Voltou, acuado, ao seu covil, esperando-a e temendo-a ao mesmo tempo.
E ela veio.
Sentou-se ao lado dele e, por um momento, ele sentiu que a vida não era de todo má, ou tinha a obrigação de não ser. Ela existia, e se ela existia, viver por ela era lei. Não importava se tudo o que ela tinha a oferecer era um olhar condescendente que o esmiuçava e o poupava de confessar o inconfessável.
Ela sabia cada pormenor. Ela conhecia sua impotência diante dela. E ela fazia disso seu instrumento de tortura não declarada.
Veio o tempo.
Os fantasmas já não o incomodavam mais. Transparentes, fundiam-se à paisagem e ali permaneciam, mero acessório das culpas não purgadas que ele simplesmente havia desaprendido a temer. Ele não mais se perguntava qual daqueles equívocos desencarnados seria o seu assassino. Ninguém mais tinha o direito sobre a sua vida.
Só ela.