quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Helena

Já era madrugada, mas Morfeu havia esquecido aquela alma inquieta, cujos pensamentos não iam muito além do mar. O sono recusava-se a chegar e ela, os olhos muito abertos, não conseguia deixar de fitar o escuro que a amedrontava e a escondia, na mesma medida.

Sombras dançavam na parede e fantasmas espreitavam, incorpóreos, inconformados.

Ele estava lá, ela sabia. Sentiu desde o início, como sentira tantas vezes em noites outras. Desde que ele a escolhera, por razões desconhecidas, era sempre assim. Ele saltava a janela e seu cheiro salgado invadia o aposento, embebia-a de oceano e despertava todos os seus sentidos. Ela, imóvel, apenas temia. Temia-o; temia sua ausência; temia o que não sabia ao certo sentir e o que poderia vir a ser.

Ele avançou por ela sem pedir licença. Cheirou-a, tocou-a, sorveu-a com a ânsia de uma alma árida. E então, só então, ela apertou os olhos com força, ainda que ele não pudesse ser visto. O porvir não lhe era tão difícil de adivinhar.

Vencida, exímia conhecedora de si mesma – e da própria impotência, ela por fim esvaiu-se em seus braços imateriais. Ele não cabia em explicações, tampouco permitia alguma escolha. Ela o pertencia e não podia fazer nada a respeito. E, desde que ele a elegera para nela se perder durante noites a fio, havia um lugar vago em sua cama – o lugar de um homem honesto que não soube como dividir sua mulher.

Ele se revelou, diáfano feito as cortinas que esvoaçavam ao sabor do vento. Translúcido, ágil como uma onda, cheirando a mar e a destino – a personificação daquela noite de espera. Percorreu seu corpo com as mãos geladas, sorrindo – conhecia como ninguém as represas daquela mulher que amava o mar.

— Onde está seu marido? — perguntou, a voz rouca, soando distante com as ondas que quebravam na praia.

— Ele foi embora. Ele não agüentou saber de você... De nós...

O sorriso desapareceu de seu semblante. Só havia um desejo quase mortal em seus olhos líquidos. E ele a bebeu, arranhou, mergulhou nela e a tomou por inteiro. E nele ela cravou unhas e dentes, medo e pavor; até que ele extraiu sua alma pela boca, inundado, num gemido longo de conclusão.

Ele, como sempre, sumiu na noite, efêmero, fugaz como havia chegado, com seu cheiro de mar e textura de sonho. Voltou ao seu reino intacto, inteiro como uma divindade, e a deixou caída, quase desfalecida, surda e cega de amor.

E ela gemeu baixinho, chamando seu nome para a noite:

— Poseidon...