Ele não sabia aonde ia, nem porque ia, apenas deixava o ruído dos seus passos secos e o tilintar do punhado solitário de moedas que trazia no bolso ecoarem na noite. Algumas tristezas lhe pesavam na mente. Ele esperava, com sinceridade, que uma boa dose de aguardente aliviasse o fardo.
Encontrou a moça numa das esquinas de seu caminho improvisado. Ela encolhia-se na penumbra como se quisesse passar despercebida, ou como se desejasse realmente fazer parte da paisagem e nada mais. Ergueu os olhos quando ele passou, hostil, mas baixou a vista instintivamente para a garrafa de vidro aninhada em seu colo. Ele a encarou por longos minutos antes de, com um suspiro, falar.
— Eu perguntaria a você o que uma moça tão jovem faz numa rua deserta à essa hora... Mas acho que minha intromissão não me dá direito a respostas, não é?
Ela apenas envolveu a garrafa nas roupas, sustentando-lhe o olhar com obstinação. Seus olhos verbalizavam o que o silêncio da rua traduzia – ele não era bem-vindo ali. No entanto, o escuro e as circunstâncias sopraram no rapaz alguma insolência no juízo. A noite ia avançada; a rua era pública; a jovem era bonita – ainda mais com toda aquela raiva estampada nos olhos; e, o mais importante, aquela garrafa continha um calmante para os nervos, uma chave para o esquecimento temporário dos problemas que faziam dele um sonâmbulo-insone-insano.
— Sabe — ele falou, acostando-se ao muro baixo, em frente à ela — está uma bela madrugada. Eu pretendia comprar um bom litro de cachaça e tentar afogar as minhas mágoas... Mas encontrei você, sozinha, encolhida, com uma garrafa no colo. Acho que é uma noite bonita demais pra você passá-la sozinha, não é?
Silêncio.
— Ah, Deus. Mais uma madrugada, mais um monólogo. Ao menos, dessa vez não falarei com as paredes... Terei alguém de verdade. Talvez eu pareça menos autista falando sozinho com uma moça.
Ela riu. Sua risada era quase um paradoxo – tão sem alegria que soava como um lamento.
— Você não vai parecer autista, mas vai parecer idiota.
— Então você vai fazer um favor à minha reputação e vai conversar comigo?
— Por que eu faria isso? É madrugada. Não tem ninguém na rua.
— Talvez pelo meu magnetismo, ou minha simpatia...
— Ou pela sua impertinência, correto? — a nota de irritação na voz dela era menos audível agora.
— Eu diria pela minha insistência. Ou pela sua educação refinada.
— Você supõe coisas demais. — ela desviou os olhos do chão para o rosto dele, por um momento, e depois para o céu.
Os olhos da moça passaram a ostentar uma apreensão triste. Ela se mexeu e a garrafa escorregou de seu colo, fazendo um ruído metálico ao aterrissar na calçada.
— Cuidado com isso... A uma hora dessas, é ouro líquido, sabe? — falou ele, observando-a.
Ela mirou a garrafa, cujo líquido balançava ao sabor do impacto recente.
— Talvez não seja... Eu achei que fosse, mas talvez... — ela balbuciou, a voz fraca.
— Não me diga que você é iniciante! — ele exclamou, sorrindo, adiantando-se para a garrafa.
— Não!! Eu não sou iniciante. Eu só... Estou esperando.
— Hm. Esperando. Seja feita a vossa vontade, então. — ele devolveu a garrafa para a jovem, que voltou a agasalhá-la nas roupas.
Silêncio.
— Por que você está aqui?
— Para esquecer.
— Esquecer?
— Cada noite, tento esquecer cada dia. É uma lógica simples. — ele sorriu, amargurado.
— E ineficaz, pelo que eu vejo.
— Mas eu sigo tentando. Não tenho nada a perder.
— Sendo assim...
— E você? Por que decidiu recorrer à madrugada?
— Não sei. Pra fugir, eu acho.
— Ótimo... Resumindo, somos dois covardes, não? — ele deu uma sonora gargalhada. — Um tenta esquecer, outra tenta fugir... E no fim... — o sorriso dele esmoreceu — sabemos que é inútil.
Ela acariciou, inconscientemente, a garrafa embrulhada em suas vestes. “Talvez não seja tão inútil assim pra mim”, pensou. “Talvez os meus meios de fugir sejam melhores que os seus meios de esquecer... Mas será que eu tenho que escolher esse caminho?”.
Ela sentia a vontade vacilar. Havia se refugiado ali por ter perdido tudo o que lhe tivera
significado – família, namorado, amigos, casa. Era culpada e por isso escolhera, sem hesitar, a desistência. E, no entanto, agora, sentia cada vez mais vontade de conversar com aquele estranho; confidenciar-lhe segredos, saber-lhe os motivos. Sentia-se tentada a adiar seus propósitos, ou desistir deles. Começava a pensar se realmente havia desejado aquilo ou
se tudo não passava de um capricho imediatista. E, por fim, julgou-se boba pelos desejos infantis que conjurava na mente e no coração.
Ele, por sua vez, esqueceu. No caminhar das horas, ali, conversando com a bela desconhecida, esqueceu de tudo o que o fazia querer embriagar-se de aguardente. Os olhos tristes da moça assumiram o primeiro plano em sua atenção, a voz baixa e grave com que ela falava, as mãos torcendo-se, nervosas, no colo dela. Atração irremediável.
A única coisa que ele não esqueceu foram seus impulsos levemente alcoólatras.
O sol não era nada mais que uma linha alaranjada no horizonte quando eles silenciaram. Ela, numa letargia sonolenta, apoiava a cabeça sobre um dos ombros, os olhos semicerrados. Ele aproximou-se, prevendo a falta de reações da companheira de serão, sorriu de leve e beijou-a nos lábios. Depois, com a delicadeza de quem manuseia porcelana, ele tirou a aguardente das vestes dela, abriu a garrafa e tomou um longo gole. Apertou os olhos.
Ela só despertou horas depois. Deparou-se com a garrafa aberta, na horizontal, envolta por uma poça de líquido transparente – aguardente e o veneno que ela escolhera para trilhar o caminho sem volta da desistência – e o gentil andarilho que conhecera naquela madrugada estendido ao seu lado. Morto.