domingo, 14 de fevereiro de 2016

Segue

(96 Days, de Mayra Andrade, me deu a ideia)

Não há razão para essa tristeza se eu acordei de manhã e meu café era doce. É uma daquelas manhãs cinzas de nada pensar – é meu café emoldurado na janela e o vento levando a fumaça pros confins da atmosfera. É manhã de sino-do-vento tilintando e um vazio sem nome entalado na garganta. É manhã de quase cem dias sem pensar em você, e olha que nem fiz esforço.
E a título de informação, estou me alimentando bem, as janelas estão limpas, todas as coisas estão em seu devido lugar, até aquelas que não pertencem a lugar nenhum. Continuo cometendo meus erros na santa humanidade de cada dia. Coisas que você gostaria de saber, eu acho. Está tudo imerso nessa calmaria cinza feito a manhã. Eu ando tossindo, mas não é nada demais, sabe? Ando fumando um pouco além do esperado esses dias. Imagem e semelhança de alguém que conheço.
Não sei dizer se as coisas vão bem, mas as coisas vão. Nessa quietude preguiçosa da vida que continua à revelia de tudo, como se sua ausência não houvesse sido imposta assim, de repente. E desço pras ruas e os carros avançam como se fossem barcos e tudo isso porque eu acendi mais um. E acenderei outro, e esse é por você e por sua memória. Tá vendo o estrago? Você parou, eu soube, mas me deixou com o vício. Pulmões são superestimados, você diria. É, eu ando fumando demais esses dias.

Eu ensaiei contra o vidro embaçado as frases que diria se houvesse sentido, mas não vejo mais propósito nisso. Elas sobem no ar e encontram a fumaça do meu café. Em direção ao nada. É frio desse lado? Por aqui é um pouco, mas o café queima minha língua e eu acabo esquecendo tudo isso. Que é mais ou menos o seu destino também. Mas não tem problema, não tenho razão pra estar triste. Acordei essa manhã e meu café era doce.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Um quase

A gente não se olha nos olhos, você reparou? Parece que ficam no ar todas as acusações implícitas do nosso quase-amor – esse atrevido, que agora dorme tranquilo no vão dos anos que se passaram.
Já faz tanto tempo, não é?
Parece até covardia falar em saudade. De tudo o que foi eu só queria de volta minha poesia, porque parece que você a levou toda embora e esgotou toda a minha sorte em histórias de boa loucura. Sabe? Como se numa tacada só eu tivesse me permitido toda inconsequência que uma vida admite? É coisa injusta, mas dos meus dedos não sai mais nada que me agrade desde que nos demos por encerrados.
Você foi meu melhor beijo, meus maiores suspiros, minha melhor roupa, minha mais louca canção. Te dediquei tantos poemas, tantas palavras. Me pergunto se você sabe. Nunca tive coragem de te contar e agora, tenho menos ainda – agora que nossos caminhos não se cruzam mais.
Nunca nos pertencemos, mas existe essa parte de mim que não tem outro dono que não você. Gosto de pensar que existe um você que só eu tenho, só eu vi, só eu sei. Também gosto de pensar que você guarda consigo um pouco do meu eu que foi seu, com o mesmo cuidado que dedico a tudo que foi nosso.
Nossas memórias de quase-amor. Você é quem jura ter chegado perto de me amar; eu não tenho certeza se fiquei aquém da linha de chegada.
Eu só sei que eu queria de volta aquela fluidez de palavras brotando da saliva. Dos meus olhos. A malícia quase inocente, aquela ansiedade que me levava embora, embora. Aquele não saber das coisas.  Aquele eu que só você tem. Essas coisas que ninguém mais pode me dar.
Quero por querer, porque sei que nada disso posso reaver. Existem coisas que ficam presas nas dobras das primeiras vezes. Só o que nos sobrou é o suspiro que parece saudade, embora dizer saudade seja quase um desafio ao presente... E nossos olhos, que não conseguem se encontrar.

Talvez seja melhor assim. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Pendência

Você tem uma pendência? Um assunto mal resolvido, não tão importante, mas que cutuca o fundo do seu cérebro de tempos em tempos, te lembrando de que ainda existe e que ei, não pretende parar de te atormentar até que você tire a questão a limpo de vez? Incômodo e inofensivo, feito um cisco no olho?
Eu tenho uma. E olha, não sei por quê, não sei qual é o meu problema. O salário que cai na conta ao fim de cada mês paga todas as despesas e paga ainda mais algumas cervejas. A tal solidão não me atormenta mais, uma moça bonita sempre atende as minhas ligações e diz sim aos meus convites para o cinema, para o chope de depois e a transa da madrugada. Acho que as pessoas chamam isso de namoro.
E isso acalma um homem, dizem. Isso é o que o faz recolher o time, fechar a porta, apagar as luzes e se dar por satisfeito, muito satisfeito, no nível de suspiros risonhos toda noite, antes de dormir. Você pode dizer que eu sou um homem quieto.
Mas há ela.
Ela remanesce, como um eco do não feito no passado. Não é que ela esteja diferente, embora me pareça diferente, a cada rara vez que a gente se encontra. Mas ela remanesce. Ali, na minha frente, é quase um grito do passado, me jogando na face as decisões que não tomei.
Como nos velhos tempos, ela ainda sorri quando me vê e ri das minhas piadas, não sei se por compaixão ou por seu senso de humor pouco exigente. Tudo está igual. E ao mesmo tempo, tudo está melhor, maior. É como se aquela figura me esfregasse na cara o que eu perdi. Você entende isso? Ela fica cada vez mais atraente pra massacrar em mim o fato de que a deixei escapar.
E não é que eu a tenha deixado escapar, pelo amor de Deus! Aconteceu algo, foi bom, eu não sabia como encerrar, não queria encerrar, mas também estava pela metade e ela decidiu por mim. Sumiu por uns tempos, voltou quando as coisas estavam calmas. Eu, definitivamente, estava calmo... Mas perto dela, nem um pouco.
Pode me chamar de porco. De canalha. Ela mesma o faz, quando pergunto “é coisa da minha cabeça ou você está ainda mais gostosa?”. Me devolve aquele sorriso meio surpreso e rebate “Depende, de que cabeça estamos falando?”. E ri. Aquele sorriso de não-vai-acontecer-de-novo. Ou de tome-vergonha-na-cara. Ou de quem não me leva a sério. E não deveria, olha de quem estamos falando.
Mas ela remanesce. O sorriso é o mesmo, a simpatia de sempre, as piadas ruins ainda por aí... Mas não sei o que essa menina tem que me deixa fora de mim. E eu desconfio que nunca de fato saberei o que é viver sem essa tal pendência. A não ser que as coincidências nos coloquem no lugar certo e na hora certa.
Ela remanesce, incômoda feito um espinho do pé. Uma pedrinha no meu sapato. Bagunçando a tal paz de que eu me julgava um afortunado possuidor.

E há quem me aconselhe que deixe tudo isso de lado e viva minha vida. É... tem gente que não sabe que a vingança não é o único prato que se come frio.